Tradução da terceira seção do segundo capítulo do livro Homosexuality and liberation: elements of a gay critique. Londres: Gay Men’s Press, 1980. p. 60–72
[60] A visão de Freud de que a homossexualidade, mesmo sendo uma ‘perversão’, não era [61] uma síndrome patológica, está longe de ser um consenso entre todos os psicanalistas e psiquiatras. Isso é visível na repressão do entendimento que a escola psicanalítica efetuou contra os aspectos mais ameaçadores do pensamento freudiano — até Wilhelm Reich se enrolou na repressão que denunciava, particularmente na questão da homossexualidade.
Sandor Ferenczi, por exemplo, manteve uma posição explicitamente contrária à de Freud com relação à homossexualidade. Em 1909 ele definiu a homossexualidade como uma psiconeurose e afirmou não acreditar em qualquer homossexualidade universal e congênita. Em outubro de 1911, no terceiro congresso da Associação Internacional de Psicanálise, sediado em Weimar, Ferenczi propôs uma distinção entre sujeito- e objeto-homoerotismo:
Um homem que, ao copular com outro homem, se sente uma mulher, é invertido em relação a seu próprio ego (homoerotismo pela inversão-sujeito, ou, mais sucintamente, ‘sujeito-homoerotismo’); ele se sente uma mulher, não só no coito genital, mas em todos os aspectos da vida.
Esse último tipo de homossexualidade, de acordo com Ferenczi, constitui “um verdadeiro ‘estado sexual intermediário’ (no sentido que emprega Magnus Hirschfeld e seus seguidores), logo uma pura anomalia do desenvolvimento”. (Atenção para a simplicidade de sua definição.)
À figura do homossexual passivo ‘sofredor’ desse ‘sujeito-homoerotismo’, Ferenczi contrapõe o ‘verdadeiro homossexual ativo’:
O verdadeiro ‘homossexual ativo’ … se sente um homem em todos os sentidos, é sempre muito enérgico, e não há nada afeminado a ser descoberto em sua organização mental ou corporal. Apenas o objeto de sua inclinação é trocado, então pode-se chamá-lo de homoerótico pela mudança do objeto-amor, ou, mais sucintamente, um objeto-homoerótico.
É esse ‘homoerotismo objeto’, de acordo com Ferenczi, que constitui a neurose — uma neurose obsessiva, para ser mais preciso. Ao descrever o ‘objeto-homoerotismo’ como uma síndrome [62] patológica, Ferenczi admite que está “em oposição a Freud, que, em sua ‘Sexualtheorie’ descreve a homossexualidade como uma perversão’.
Está claro que, enquanto o rótulo de ‘perversão’ que Freud aplicou à homossexualidade deixa ver a base reacionária de sua posição sobre pessoas gays (mesmo que seja ‘inapropriado … usar a palavra perversão em tom repreensivo’), outros psicanalistas, incluindo alguns pessoalmente próximos de Freud como Ferenczi, foram mais abertamente reacionários ao definirem a homossexualidade como patológica em si mesma.
Por outro lado, o argumento de Ferenczi é cheio de contradições. Em alguns textos em que lida com a questão da homossexualidade indiretamente, ele sempre aceita implicitamente a existência de uma homossexualidade congênita, p. ex. a presença universal do desejo gay. Mas se (como esses textos sugerem) qualquer ser humano pode ser visto também como homossexual, seríamos todos afetados pela neurose obsessiva ou por uma ‘pura anomalia do desenvolvimento’?
Não, Ferenczi diria, porque é esta a razão pela qual se diferencia pessoas ‘neuróticas’ das ‘saudáveis’. Claramente, em seu ponto de vista, a homossexualidade é uma psiconeurose ou anomalia só se manifesta, isto é, quanto vence as resistências e escapa da repressão.
Acredito que falo por muitos homossexuais que, pelo contrário (e aqui nos aproximamos mais do raciocínio de Freud), a neurose geral que afeta a todos em nossa sociedade é em grande parte uma função do social, a extinção do desejo gay, sua repressão forçada e sua conversão em sintomas patológicos.
Ferenczi, ao que parece, não quis chegar a essa conclusão. Sua condição privilegiada de homem heterossexual conforme a Norma impediu que ele descobrisse o papel central da repressão da homossexualidade na etiologia da neurose que atormenta nossa sociedade e civilização. Para descobrir isso ele precisaria ter reconhecido primeiramente sua própria ‘neurose obsessiva’ e o caráter anômalo de seu próprio desenvolvimento como oposto a uma ‘evolução’ pansexual livre. Assim, ele precisaria considerar como é possível estar verdadeiramente bem e ‘saudável’ a não ser que se liberte o próprio desejo por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade manifesta em si mesma não garante felicidade, mas não [63] existe libertação verdadeira sem a libertação do desejo gay.
Mencionei que a maioria dos estudos psiquiátricos sobre a homossexualidade (masculina) sempre tende a separar em duas categorias fechadas os homossexuais ‘masculinos’ (o ‘objeto homoerotismo’ de Ferenczi) e os ‘femininos’ (‘sujeito homoerotismo’) de acordo com o modelo tradicional de papeis sexuais heterossexual e a distinção rígida entre os sexos. Os psiquiatras e psicanalistas que se arriscam no estudo da homossexualidade se veem incapazes de não aplicar a ela categorias de interpretação completamente heterossexuais. Quanto aos antipsiquiatras, eles entendem mais de Lacan que de homossexualidade. (‘Quer um pouco de Lacan?’, ‘O que é isso, um refrigerante novo?’)
Nas interpretações psicanalíticas, então, nós homossexuais encontramos apenas uma figura distorcida de nós mesmos; as visões dos psicanalistas quase sempre se equiparam às ideias estereotipadas e falaciosas que os heterossexuais ignorantes têm de nós. (E quando o assunto é homossexualidade todos os heterossexuais são mais ou menos ignorantes.) Longe de começar pela aparência de nossa vida ‘externa’, nossa exclusão da sociedade, com vistas de atingir, pela análise crítica, a realidade de nossa condição como homossexuais, a psicanálise, carregada de preconceitos, aplica categorias de interpretação tiradas da típica visão heterossexual da homossexualidade. Em outras palavras, ela procede de aparência em aparência, semeando ilusões, erigindo obstáculos para a crítica e reforçando a ideologia predominante.
É corriqueiro se confrontar com posições essencialmente iguais às de Ferenczi na história da psiquiatria e psicanálise. É muito comum que médicos classifiquem a grande maioria — se não todos — dos ‘casos’ de homossexualidade manifesta como neurótica e psicopatológica. Na sua visão o homoerotismo é neurótico como uma ‘fixação infantil da libido, em particular uma fixação no estágio anal-sádico’; ‘por sua falha ao dissolver o complexo de Édipo e seu narcisismo persistente’; ‘por sua repressão da heterossexualidade’; ou, finalmente, ‘por seu desenvolvimento sexual problemático na primeira infância originado de uma frustração profunda na aproximação com o sexo oposto’ (Wilhelm Reich). Essas são as respostas mais comuns.
[64]E também há aqueles que veem a causa da homossexualidade no ‘pânico’ vivido em relação ao mistério do outro sexo. ‘Consideramos a homossexualidade uma adaptação biossocial e psicossexual patológica consequente ao medo generalizado da manifestação de impulsos heterossexuais’ (Irving Bieber).
Se vê imediatamente como hipóteses como esta são acríticas e ilusórias pelo modo com que tentam nos entender a partir do preconceito de que a heterossexualidade pode ser tomada como ‘normal’ em um sentido absoluto. Porém, se seguirmos as teorias psicanalíticas sobre a ‘patogênese’ da homossexualidade, não podemos evitar considerar também a heterossexualidade, por analogia, como neurose — por sua repressão da homossexualidade, por exemplo, ou pelo pânico que sente de relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. Poderíamos dizer, parafraseando Bieber: ‘Consideramos a heterossexualidade uma adaptação biossocial e psicossexual patológica consequente ao medo generalizado da manifestação de impulsos homossexuais’.
Não é legal brincar de pique-esconde com psicanalistas — ou, melhor, psiconazis — e nem é útil confrontá-los em seu próprio terreno. Esses médicos estão imersos em idiotices advindas do tabu anti-homossexual em seu inconsciente, e com certeza não é preciso levar suas ‘opiniões’ a sério. E ainda assim muitas pessoas ainda hoje acreditam que estão certas, e encontram nos preconceitos dos psicanalistas um apoio para os seus próprios, de modo que é impossível evitar lidar com eles. Devemos aqui ter em mente o que Domenico Tallone escreveu sobre a equivalência psiquiátrica entre a homossexualidade e a doença: ‘Eu preferiria não ter que discutir sobre um tema tão estúpido se essa idiotice não fosse ainda tão bem-sucedida em substituir o bom senso por resultados vazios amparados por títulos acadêmicos’.
Está claro que, a não ser que simplesmente assumamos o preconceito atual que considera a heterossexualidade ipso facto ‘normal’ e ‘natural’ e a homossexualidade ‘anormal’ e ‘não natural’, falar que a maioria dos ‘casos’ de homossexualidade manifesta é psicopatológica e que o homoerotismo é uma neurose nos força a admitir que a heterossexualidade é também psicopática e uma doença. Então podemos nos perguntar para qual objetivo, e, especialmente, [65] no interesse de quem se diagnostica homossexuais como ‘neuróticos’, e aí poderemos ver o quão absurdo é declarar poder ‘curar’ a homossexualidade como ‘doença’ a partir da perspectiva heterossexual dos psiconazis, que se tomam por saudáveis, mas na verdade são neuróticos.
Mas por que o homoerotismo é considerado ‘anormal’ e ‘não natural’? Se o animal no homem é considerado parte essencial de sua ‘natureza’, vemos imediatamente como a homossexualidade é comum entre os animais, e em certas espécies inclusive é mais disseminada que a heterossexualidade, tanto a masculina quanto a feminina. A homossexualidade é extremamente comum entre primatas, e muitos mamíferos subprimatas também são homossexuais, como leões, golfinhos, cachorros (quem nunca viu dois cachorros machos ou fêmeas trepando?), gatos, cavalos, ovelhas, bovinos, porcos, coelhos, porquinhos-da-índia, ratos, etc. Também há pássaros que comumente são gays (patos, por exemplo).
Mas ainda assim esse tipo de evidência não serve de nada para abrir os olhos dos intransigentes. Esses heterossexuais vendados usam os conceitos de ‘natural’ e ‘não natural’ de modo conveniente. Podemos citar o que Eurialo De Michelis tem a dizer, por exemplo, em seu texto chamado ‘A homossexualidade Vista por um Moralista’ [Homosexuality Seen by a Moralist]: ‘Que força existe no argumento irresistível de que o amor ‘não natural’ também é visto no mundo animal? Pode ser algo inocente nas feras mas não no homem, já que a vida humana é feita do que distingue o mundo humano do animal’.
Deixemos os animais em paz, já que vimos que eles também têm amores ‘não naturais’ e que a vida humana envolve algo mais. De setenta e seis formas diferentes de sociedade estudadas pelos antropólogos Cellan Ford e Frank Beach, a homossexualidade era censurada e mais ou menos reprimida em apenas vinte e sete (pouco mais que um terço). O tabu anti-homossexual que caracteriza nossa civilização Ocidental não é, então, um elemento estrutural da ‘natureza humana’, mas tem uma certa origem misteriosa. Sodoma e Gomorra não foram destruídas por nada.
Enfim, já vimos como a própria psicanálise, nas palavras de Freud, declarou a presença universal do desejo homoerótico nos seres humanos. Disso eu deduziria que a heterossexualidade, enquanto baseia sua suposta primazia na [66] na falsa afirmação de que a homossexualidade é ‘não natural’, ‘anormal’ ou ‘patológica’, demonstra que é, em si mesma, patológica. Mais precisamente, se o amor por um ser humano do sexo ‘oposto’ não é de fato absolutamente patológico, então a heterossexualidade como se apresenta hoje, ou seja, como a Norma, é patológica, já que funda sua primazia como um déspota pela opressão de outras tendências eróticas. Essa tirania heterossexual é um dos fatores determinantes da neurose moderna, e (dialeticamente) é um dos sintomas mais graves dessa neurose.
Muitos psiquiatras e psicanalistas, em seu papel de policiais iludidos da autoridade capitalista heterossexual, distinguem vários tipos de homossexualidade de um ponto de vista médico e psicológico: de acordo com eles, devemos falar não de homossexualidade, mas de homossexualidades. No mesmo espírito devemos falar de heterossexualidades em vez de simplesmente heterossexualidade.
Há médicos que diferenciam vários tipos de homossexualidade de acordo com a idade do ‘objeto’ do amor: pedofilia ou pederastia se for criança ou adolescente, gerontofilia se a pessoa for velha. Mas e se o ‘objeto’ sexual estiver em algum lugar entre os dois?
Ao menos com relação à pedofilia, a etimologia grega não faz distinção de sexo: paidos pode ser usado tanto para menino quanto para menina. Deveríamos distinguir a heterossexualidade pedófila de outras formas de heterossexualidade? Na verdade, quando as pessoas supostamente ‘normais’ menosprezam a ‘perversão’ da pedofilia nas relações entre pessoas de sexos diferentes, elas certamente não se referem a ela como heterossexualidade (uma vez que essa é para elas sinônimo de ‘normalidade’) nem como pedofilia (já que sua ignorância os leva a considerar esse termo como um simples sinônimo de homossexualidade masculina). Eles preferem falar só em ‘perversão’, ou pior, em ‘crime hediondo’. Para as pessoas ‘normais’ um homem que faz sexo como uma menina não é um heterossexual, é um monstro. E ainda assim Lolita vende muito. Está nas estantes das melhores famílias, em suas fantasias e segredos.
E ainda há médicos que cometem o disparate de diferenciar homossexualidades de acordo com uma suposta modalidade de ‘técnica’ [67] sexual (anal, oral, etc.). Mas de novo, qual é o sentido dessa distinção se um indivíduo pode ter várias ‘homossexualidades’? Ele faz sexo anal, chupa rola, beija, abraça e se masturba em intervalos ou ao mesmo tempo, ele é ativo ou passivo com seus parceiros, é ativo e passivo com dois parceiros ao mesmo tempo? Mas do ponto de vista da ‘técnica’, uma mesma pessoa pode também ter várias heterossexualidades: o sexo anal, por exemplo (mesmo que o Último Tango tenha sido banido na Itália), além do tradicional genital/frontal heterossexual. Enfim, o que esses médicos perturbadores falariam dos que gostam ao mesmo tempo de vários modos de heterossexualidade e homossexualidade? De uma pessoa, por exemplo, que com o punho de sua irmã no cu, fode o namorado da irmã enquanto masturba a irmãzinha do namorado e chupa seu padrasto. (Padrasto de quem?)
Com todas suas distinções, tão inúteis quanto pomposas, nossos médicos só se inspiram no tio (pra ficar em família) do poema de Catulo:
Gelius,
[ ouvindo seu tio anatematizar a mera menção
e também prática do amor e das possibilidades do amor
determinado a tirar vantagem da situação
prontamente atacando sua tia. O tio
foi discretamente incapaz de mesmo mencionar o acontecimento.
Gelius pôde fazer o que quis.
[ Se sodomizasse o velho
O tio nem pronunciaria uma palavra.
Mais ridícula ainda é a distinção feita por certos psiconazis das características da conexão homossexual: ‘relações em um nível puramente instintivo, ou de um amor erótico complexo’ (Tullio Bazzi). É exatamente este tipo de distinção que permite à Igreja considerar relações homossexuais como mais ou menos pecaminosas de acordo com seu caráter. (Mais ou menos, já que são ainda assim pecados no que tange à moralidade católica.)
Por fim, os médicos geralmente distinguem as formas da ‘verdadeira’ homossexualidade [68] de outras formas ‘espúrias’ e ‘pseudo’ homossexualidade (Bergler, Schneider, Servadio, entre outros defensores dessa visão).
- A ‘verdadeira homossexualidade’ só existe quando ‘um homem de impulsos femininos se atrai por um homem com impulsos e um corpo masculinos’. Só nesse caso, de acordo com os médicos, existe uma ‘inversão psicossexual do sujeito’.
- Esse não é, entretanto, um caso de ‘inversão sexual verdadeira’, quando um homem com ‘impulsos masculinos’ se atrai por um homem com corpo ‘feminizado’ mas impulsos ‘masculinos’. Nesse caso diriam, o ‘objeto’ é incapaz de amar o ‘sujeito’. Por que não? O componente homossexual anteriormente latente não poderia emergir independente de seus ‘impulsos masculinos’ (que os médicos obviamente equiparam à heterossexualidade)? Nós bichas sabemos perfeitamente que não existe um heterossexual incorrigível. Você só precisa pegá-lo na hora certa (também não importa se seu corpo é ‘masculino’ ou ‘feminizado’). ‘Um homem com experiência homossexual com certeza pode encontrar mais parceiros sexuais entre homens que um homem com experiência heterossexual poderia encontrar com mulheres’ (Kinsey). Não há nada mais gay que transar com um cara que tinha a convicção de não sentir nenhuma atração sexual por outros homens, e que aí, graças a seu talento para a sedução, do nada começa a pegar fogo de desejo em seus braços. A distinção médica entre ‘verdadeira’ e ‘pseudo’ homossexualidade é um castelo no ar. A homossexualidade é sempre verdadeira, e ela verdadeiramente existe mesmo que não aparente, p. ex, quando ainda está latente.
- De acordo com alguns desses médicos é impossível falar de uma ‘verdadeira’ homossexualidade no caso de um ‘homem com impulsos masculinos’ se sentir atraído por um ‘homem com o corpo feminizado e impulsos femininos’, mesmo que nessa situação (eles devem admitir — bom pra eles!) ‘seja possível a formação de um laço recíproco’. De acordo com os psiconazis, de fato, enquanto os ‘impulsos’ de um homem se mantêm masculinos é impossível falar de uma verdadeira inversão psicossexual do ‘sujeito’, ou ‘verdadeira homossexualidade’. Aqui vemos os efeitos absurdos da noção de ‘inversão psicossexual do sujeito’ como condição sine qua non da ‘verdadeira homossexualidade’ e a dicotomia ilusória de ‘sujeito’ e ‘objeto’ (mesmo se qualquer sujeito seja também um objeto e vice-versa). Nossos psiconazis não se atêm a este terceiro ‘caso’, e o consideram uma expressão [69] ‘espúria’ da homossexualidade, apesar de, com relação aos ‘impulsos’, ele ser simétrico ao primeiro ‘caso’, que na sua visão é a única forma de ‘homossexualidade verdadeira’. Nesse sentido, negando o aspecto de reciprocidade no conceito de homossexualidade ‘verdadeira’, eles negam a possibilidade de uma genuína relação homossexual e reduzem a ‘verdadeira’ homossexualidade a apenas um atributo de um certo tipo de ‘sujeito’.
Resumindo de novo: pra muitos psiconazis a homossexualidade só é verdadeira se for acompanhada do que chamam de ‘inversão psicossexual do sujeito’, já que nesse caso ‘o sujeito possui uma psicossexualidade feminina e é compreensível que se sinta atraído por homens’. Só um ‘uraniano’ ideal (‘a mente de uma mulher no corpo de um homem’ — Ulrichs) seria realmente gay. Todos os outros são pseudo. Por que diabos será que as pessoas geralmente juntam todos os homens que querem transar com outros homens? Talvez então o senso comum saiba mais que os médicos?
Não é difícil ver que esses médicos, com todos seus sofismas e belas definições, apenas reiteram os lugares-comuns que colocam na homossexualidade rótulos ‘interpretativos’, um carimbo heterossexual. De acordo com eles, você precisa ter ‘impulsos’ psicossexuais femininos para desejar um homem. Se não tiver, sua homossexualidade é só uma ‘pseudo-homossexualidade’. É fato, de todo modo, que o tipo de situação homossexual que eles consideram ‘verdadeiro’ de fato se aproxima da heterossexualidade. Eles são completamente incapazes de enxergar a homossexualidade masculina, por exemplo, como uma relação entre homens, e a reduz a essencialmente um tipo de ‘invertido’ com desejos ‘femininos’ direcionados ao homem: o tabu anti-gay os impede de entender que o homoerotismo não é apenas uma paródia da heterossexualidade, mas algo bem diferente, e isso os faz vomitar nuvens de palavras vazias.
Nós, no entanto, consideramos verdadeiramente homossexuais qualquer tipo de desejo, ato ou relação entre pessoas do mesmo sexo. Não é óbvio? Sim, mas os heterossexuais ignorantes parecem não entender.
Incluído nessa definição do que é verdadeiramente homossexual está o contato erótico que uma mulher, que geralmente só tem relações com homens, pode ter com outra mulher (independente dela ver isso assim ou não); de modo parecido [70] se inclui o contato homossexual ocasional de um homem, que geralmente só tem relações com mulheres, com outro homem.
De acordo com Kinsey et al., em vez de usar os termos ‘heterossexual’ ou ‘homossexual’ como ‘substantivos referentes a pessoas, ou mesmo como adjetivos para descrever pessoas, eles seriam melhores usados se descrevessem a natureza explícita das relações sexuais, ou dos estímulos aos quais um indivíduo responde eroticamente’. Eles estão bem certos aqui, mesmo que sua proposta seja abstrata e ignore o presente; porque, dada a oposição histórica entre indivíduos que reconhecem seus desejos homoeróticos e aqueles que os negam desesperadamente, seria impossível hoje evitar diferenciar homossexuais e heterossexuais manifestos. Em outras palavras, seria uma dissimulação terminológica perigosa e ilusória da verdadeira contradição que existe entre a heterossexualidade e a homossexualidade; essa é uma noite em que nem todos os gatos são pardos.
Voltemos, então, às visões dos psicólogos héteros. Muitos dizem que, em certos momentos, devido ao efeito de certos fatores ambientais, o comportamento homossexual se desenvolve como uma satisfação puramente instintiva e paliativa. Às vezes se referem a isso como homossexualidade de ‘emergência’, particularmente visível entre membros de ‘comunidades’ masculinas privadas do contato com mulheres e vice-versa. (Cadeias, campos de concentração, faculdades, conventos, navios, quarteis, etc.) É errado falar, mesmo nesses casos, de homossexualidade ‘falsa’ ou de ‘emergência’. Precisamos reconhecer também aqui as expressões manifestas do desejo homoerótico que, anteriormente latente, agora emerge dadas as condições ambientais, de um modo mais ou menos alienado (particularmente por causa das condições restritivas e inumanas).
Há até médicos que se recusam a considerar homens prostitutos como ‘homossexuais verdadeiros’ e preferem chamá-los de ‘psicopatas amorais’ (Tullio Bazzi). Mas nesse caso, homens que se prostituem para mulheres também podem não ser considerados heterossexuais verdadeiros. Eles deveriam também ser categorizados como ‘psicopatas amorais’?
Em todos os eventos vemos garotos de programa desse tipo como homossexuais, que por causa da opressão do homoerotismo e da pobreza [71] em que vivem, só podem expressar seus impulsos homoeróticos quando o justificam, para si mesmos e para os outros, pela necessidade de ganhar dinheiro (independente disso ser ou não uma desculpa).
Em conclusão, devemos associar a opinião daqueles que consideram a homossexualidade uma ‘psiconeurose’ àquelas pessoas que, ao invés de se orgulharem de sua condição, se envergonham dela, a temem, tentam escapar dela. Mas disso se seguiria que poderíamos também definir como psiconeuróticos aqueles heterossexuais que negam desesperadamente possuir impulsos homossexuais, já que é precisamente essa negação intransigente que revela seu medo de reconhecer a homossexualidade em si mesmos, algo que não podem aceitar; são neuróticos porque são bichas encubadas. Esses homossexuais que têm medo de sê-lo são neuróticos, mas a sociedade heterossexual que rejeita o homoerotismo, considerando-o vergonhoso e indecente, condenando-o à latência ou marginalização, também é. Os homossexuais que prefeririam ser héteros só refletem uma sociedade que reprime o homoerotismo.
Mas quando uma pessoa gay ‘se aceita’, a psicoterapia precisa reconhecer que ‘os resultados são virtualmente nulos naqueles raros sujeitos que estão preparados para tal cura’. Algumas pessoas podem se perguntar como é possível para um homossexual aceitar sua condição e ao mesmo tempo fazer uma terapia pra mudá-la. Evidentemente é suficiente para os médicos que uma pessoa gay não surte por sua homossexualidade para que possa dizer que ele ‘se aceita’ e proceder, frequentemente, à tentativa de ‘curá-lo’. Mas uma pessoa gay que realmente se aceita, que se ama como é e pelo que faz, e que ama outras pessoas gays, nunca consentiria a qualquer ‘cura’ que buscasse transformá-lo em heterossexual (nem mesmo se Delfine Serigue fosse a enfermeira).
De todo modo:
Mesmo os psicanalistas ortodoxos, geralmente tão otimistas com seus próprios métodos, são relativamente céticos sobre isso. Stekel dizia ‘nunca ter visto um homossexual curado pela psicanálise’, e Nacht (1950) admitiu que essa condição é ‘inacessível para qualquer tipo de psicoterapia’.
É óbvio que você não se pode ser curado de uma doença que não tem.