Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/01/17/2020-l-exploitation-20_1773699
Falsas contas no Insta, falsos comentários sobre produtos ou serviços, essas novas atividades são pagas aos trabalhadores subalternos e fazem da internet um mercado digital.
Do apartamento 2020 do prédio Avalon em Toronto se pode ver o dia morrer como os astronautas veem a margem do fogo do sol se esconder por trás do perfil do planeta azul. E se 2020 não tivesse sido um ano, mas um apartamento suspenso na história do cosmo?
Toda manhã caminho do Avalon pelo caminho dos filósofos e chego à biblioteca Robarts, um conglomerado de triângulos brutalistas com arestas de concreto de 100 metros por entre os quais Umberto Eco escreveu O nome da rosa. Eco imaginava a biblioteca da Idade Médica em que o Livro do riso de Aristóteles foi destruído enquanto estava em uma das bibliotecas mais futuristas do século 20, cercado por quatro milhões de livros. Nós projetamos o presente no passado e alucinamos o futuro enquanto acreditamos que estamos olhando para o presente.
Num futuro próximo, dois em cada três trabalhadores farão atividades puramente digitais. Não falo da invenção recente dos bio-robôs, mas da antiga habilidade de transformar o corpo e a alma humanos em próteses vivas que suplementam a máquina.
Alguns dias atrás, um curador de exposição de uma instituição artística de Toronto me confidenciou que, dado o seu volume atual de trabalho, ele contratou os serviços de uma pessoa no Paquistão para gerir e alimentar sua meia dúzia de contas no Instagram: uma dedicada à arte contemporânea, outra à arquitetura japonesa, outra à poesia experimental e duas ou três, aparentemente as mais exigentes, sobre as novas modas de unha — a produção de Rosalía sobre unhas se mostrou mais difícil de seguir que as ligadas às exposições do Moma. “Eu o pago em torno de vinte dólares por mês, o que pra mim não é nada, e pra alguém no Paquistão é mais que um salário médio.” O curador não sabe nem a idade nem o estado familiar ou social do trabalhador digital que contrata — ele pode nem ser uma só pessoa: ele apenas mantém contato com ele/ela/elx por meio da uma conta na internet e no banco. Irei utilizar o plural feminino para refletir essa multidão subalterna. Todo dia, essas trabalhadoras digitais anônimas estudam os arquivos do Instagram do curador, se conectam a centenas de outras contas do Instagram sobre arte contemporânea, arquitetura japonesa, poesia experimental e sobre cosmética de unhas e produzem novos conteúdos relevantes. Graças a um painel que centraliza todas as contas e permite a análise estatística, uma trabalhadora digital pode gerir cerca de 400 contas simultaneamente. Os processos de seleção e edição do material das diferentes contas se chama digital curating, “curadoria digital”. O curador é, por sua vez, curado. “Nem tenho tempo para olhar”, disse o curador. “Mas eles realmente fazem um bom trabalho, têm muito mais likes que eu poderia ter.”
Trabalhadoras digitais no Paquistão estão construindo a face imaterial de um célebre curador de arte. Apesar da relação que cada um de nós estabelece com sua conta na Internet, Facebook ou Instagram parecer pessoal e subjetiva, cada existência digital é o produto de uma cooperação eletrônica invisível. Para dizer como Marx, qualquer parede crepitante esconde um processo de exploração e extração coletiva de mais-valia digital. Um rosto no Facebook é uma mercadoria. Uma identidade é obra de um curador digital — mesmo se você acreditar que esse curador é você. Nós pagamos para construir uma máscara digital para nós mesmos enquanto buscamos imitar as máscaras que os outros também compram.
Os alunos da universidade de Toronto me dizem que muitos deles ganham uma mesada para escrever comentários na Internet para empresas diferentes: eles falam das virtudes de biscoitos que nunca comeram, falam das vantagens de um novo programa de yoga em uma academia em Alberta em que nunca foram, eles mencionam a facilidade de montar uma luminária que nunca montaram ou comentam livros que nunca leram mais que um resumo de 1800 caracteres fornecido pelo editor. “Escrevemos bem e rapidamente”, diz um deles, “e isso é o que é mais valioso nesse tipo de trabalho. Em uma noite, depois da aula, posso fazer entre cinquenta e cem comentários. Tem regras muito rígidas, não só de número de caracteres, mas também de estilo e avaliação, mas se pega o jeito rápido”. Dois em cada dez comentários podem ser ligeiramente negativos, mas três devem ser categoricamente positivos. Os mais bem pagos são os comentários que alimentam redes sociais de serviços sexuais: envolve fingir ser um cliente e dar uma nota ao serviço fornecido por um ou uma trabalhadora sexual: qualidade do lapdance, do strip-tease, da higiene, do tempo gasto, do envolvimento erótico e satisfação em geral. “Você precisa de um pouco mais de imaginação pra isso, mas como são comentários curtos, são fáceis de fazer”. No período de campanha eleitoral, só comentários políticos são mais lucrativos que os de serviços sexuais, mas é preciso fazer mais de cem por dia para ser rentável. A Internet não é um lugar público, mas um mercado digital.
Do apartamento 2020 do prédio Avalon, se pode ver o dia nascer como os indígenas chippewas podem ter visto anos atrás, o sol como uma águia bebê abrindo suas asas douradas por trás dos arranha-céus. Nos jardins no topo dos prédios de Toronto as árvores embaladas em plástico colorido se parecem com as avós em mantilhas espanholas que, balançadas pelo vento, recebem o sol dançando sevilhanas. Do apartamento 2020 do prédio Avalon é possível imaginar o futuro do capitalismo: as cristas de concreto da biblioteca Robarts transformadas em pirâmides de um deserto nuclear e os livros em novos hieróglifos que ninguém conseguirá decifrar.