Texto original: https://www.liberation.fr/chroniques/2020/05/22/hymne-au-corps_1789149
Nós amamos o corpo real, frágil e vulnerável, e não o corpo ideal e tirânico da norma. Nós não sabemos quase nada sobre o corpo vivo. Portanto, devemos amá-lo lá onde ele se exprime: em sua fragilidade trêmula.
Nós amamos o corpo doente. Amamos as cicatrizes e mordidas deixadas na pele pelas feridas. Amamos os corpos velhos, marcados pelo tempo, enrugados pelo sol, cheios de lembranças. Amamos o corpo lento. Amamos a imperfeição e o desequilíbrio, o lábio aberto, o olho que mal enxerga, a mão com dificuldades em agarrar o objeto, o pênis flácido, a perna mais curta que a outra, a coluna vertebral que não pode mais ficar ereta. Nós amamos o corpo real, frágil e vulnerável, e não o corpo ideal e tirânico da norma. Nós amamos o corpo poético, porque a linguagem é só um dos órgãos abstratos do corpo vivo. E amamos o corpo com todas as suas dimensões orgânicas e inorgânicas. A linguagem e a tecnologia são órgãos coletivos e politizados. Como todos os outros órgãos do corpo, elas foram roubadas de nós. Nós não sabemos quase nada sobre o corpo vivo. Portanto, devemos amá-lo lá onde ele se exprime: em sua fragilidade trêmula.
Nós amamos tanto o corpo que nasce quanto o corpo que se aproxima da morte, esse corpo já considerado obsoleto, inútil, improdutivo, um corpo que nos é apresentado em termos de despesa pública, corpo-dívida, um número em uma estatística de infectados e mortos. Amamos esse corpo que, embora à beira da morte, é ainda sensível a um raio de luz sobre a pele, a uma palavra, a um som. O corpo vivo em todas as suas dimensões é nossa única religião. Portanto, quanto mais um corpo devém corpo, quando ele não apresenta nenhuma das virtudes patriarco-coloniais — força, produção, juventude, luxo — mais o amamos. E é também por isso que as instituições de saúde pública, os hospitais e os asilos, as cadeias, as escolas e empresas são nossos primeiros inimigos: porque eles buscam reduzir o corpo vivo à anatomia, ao índice de saúde pública, à rentabilidade dos aposentados, ao número na prevenção de criminalidade, ao nível de educação, ao lucro.
Os governos têm falado da guerra contra o vírus, mas na verdade eles têm feito guerra contra nossos corpos poéticos. Nossa pele foi arrancada, fomos privados de todo contato e cuidado, fomos separados dos amigos e amantes, e os preciosos corpos de nossos queridos covídicos foram enterrados em uma fossa sem nome, privados do rito que liga a memória dos mortos aos corpos dos vivos. O Estado farmacopornográfico tem se comportado como um Creonte neoliberal, nos proibindo de enterrar nossos mortos por eles terem se tornados nocivos a uma comunidade que sonha em ser imunizada. Nós, os filhos bastardos de Antígona, exigimos o cuidado e a celebração dos corpos de nossos entes covídicos, tanto vivos quanto mortos.
Somos a comunidade doente porque não somos a comunidade imunizada. Estamos intoxicados e somos tóxicos. O mundo ao qual pertencemos, esse mundo que só fala de saúde pública, de prevenção e higiene, nada mais fez, do colonialismo a Hiroshima, passando pela Shoah e Chernobil, além de destruir o corpo vivo. A religião fez do corpo a prisão da alma e o inimigo de Deus. Chicoteou-o, amarrou-o, buscou purificá-lo pela tormenta e pelo fogo. Ela quis negá-lo, dominá-lo, sublimá-lo. A ciência transformou o corpo em um objeto anatômico, o dissecou, o dividiu em órgãos e funções, quis conhecê-lo e controlá-lo. O Estado liberal moderno fez do corpo um bem e uma mercadoria, responsabilidade e posse privada do indivíduo. Ele o disciplinou, normalizou, uniformizou. O capitalismo colonial fez do corpo uma força de trabalho, o esmagou, retirou dele não apenas toda sua energia vital, mas também todo seu poder de criação. Ele quis o capturar, comprar, vender, rentabilizar. O patriarcado transformou o corpo em força de reprodução. Ele o estuprou, o engravidou. No neoliberalismo, esse corpo quebrado, destruído, expropriado, capturado… do qual toda força vital foi extraída, ainda é negado. Em seu lugar, um avatar liso é apresentado como uma imagem eletrônica compartilhada. Mas o corpo resiste.
A distância social que nos é imposta não concerne apenas às práticas políticas e poéticas. Não podemos nos manifestar ou reunir para amar, debater ou crer. Mas podemos nos reencontrar para produzir e procriar. A sociedade está morta: não sobra nada além da teleusina e da família, duas esferas em que o corpo vivo ainda é negado e explorado.
Mas nós, contra todas as leis, amamos o corpo aidético, canceroso, obeso, tuberculoso, estéril, manco, leproso, ansioso, depressivo, neurastênico, psicótico, o corpo corroído pela cirrose, o corpo abalado pelo ataque cardíaco, o corpo que aguarda um transplante não importa de que órgão, vivo ou imaginário. Nós amamos o corpo covídico. Nós queremos, como o fazem todos os dias enfermeiros e cuidadores, acompanhá-lo. Nós somos anti-higiênicos, alegremente virais e contagiosamente vivos.