Texto original: https://www.liberation.fr/chroniques/2020/04/10/le-malade-numerique_1784910
Ele estava deitado em sua cama, rodeado de livros abertos que não conseguia mais ler. Ele tentou agarrar algo para beber com o braço, mas nem Saidiya Hartman nem Kathy Acker eram líquidos. A febre o impossibilitou de diferenciar os livros das bebidas. Ele jurava que poderia beber os livros e ler a água. Dentro de seu corpo, o diafragma havia se tornado uma fronteira que limitava a quantidade de ar que entrava e saía de seus pulmões. Os músculos pareciam dizer: “Deixem passar apenas o ar nacional-neoliberal”. A respiração se tornou mais e mais identitária e curta.
O telefone estava ao seu lado como um ser vivo, totalmente ativo em sua aparente quietude. O que de fora parecia um pacote estreito de plástico e alumínio coberto com vidro atrás do qual se moviam quadrados coloridos, era na realidade um animal de estimação que percorria distâncias infinitas em poucos infra-segundos e lhe trazia em sua cama as mais horríveis notícias dos lugares mais remotos da Terra, mas também mensagens de pessoas que ele amava. Em outro momento, antes do vírus, este animal era chamado de “móvel” porque podia acompanhar o seu dono em qualquer lugar. Depois do vírus, o celular ficou tão imóvel quanto seu dono, mas tão fiel, tão perverso quanto ele. Era difícil, em meio à doença e ao isolamento, não se apegar ao animal. Em confinamento total, ligar o animal digital para que ele pudesse tomar sua dose diária de eletricidade era a ação mais importante de que a pessoa doente não podia esquecer. Esta criatura técnica consumia 95 quilos de CO2, muito mais do que qualquer outro animal vivo na era pré-cibernética. Pelo menos, ele pensou, era possível acariciar animal digital.
O doente tinha se descoberto beijando o copo desta caixa, sussurrando diminutivos para ela. Mas o animal digital não era apenas um tecnoxamã ventríloquo que podia falar com as vozes de todos os outros. Era um vigilante inorgânico a serviço do poder, que virou sua câmera e microfone para seu próprio usuário e enviou todas as informações armazenadas para bancos de dados.
O telefone ao vivo era mais sofisticado que os camaleões eletrônicos. Às vezes a caixa brilhante refletia o rosto de um amigo em seu copo, falava com sua voz, em outras era transfigurada e se tornava o rosto de um médico que lhe dava conselhos sobre como lidar com o ataque do vírus, outras vezes se tornava uma tábua leve da lei anunciando as últimas medidas do governo para lidar com a crise. Na caixa metálica todos os dias surgem novos aplicativos, como novos órgãos. O paciente tocou o aplicativo StopCovid com seu dedo indicador. A partir de agora, seu animal digital enviará sua temperatura e posição física diretamente para o Ministério da Saúde. Em caso de morte, o telefone se tornaria um dispositivo forense: era uma caixa preta, ele sabia tudo sobre o paciente. Seu telefone, prótese, arquivo e extensão eletrônica do seu usuário, depois de sua morte, seria seu último órgão externo a ser desligado.
Mas esse ser cibernético ágil e benevolente era de fato o filho do Mercado e do Complexo industrial militar, criatura criada nas fábricas do capitalismo tecnopatriarcal que havia sido alimentada diretamente com os raros materiais extraídos das minas da república democrática do Congo. O coração do Congo havia sido aberto, partido, e do seu seio haviam sido extraídos os nutrientes que permitiriam que o corpo vivo se recompusesse a partir do telefone. Assim como um bebê se alimenta de leite, o telefone digital é feito de tungstênio, estanho, tântalo, lítio, cobalto, níquel, arsênico, mercúrio e terras raras. Dizem que o animal digital é feito de “minerais sanguíneos” porque, para obter os componentes que o animam, é necessário um processo de exploração, extração e violência. Assim, para fazer este Frankeinstein de bolso foi necessária uma dose de sangue humano. O paciente notou que o mesmo sangue, o mesmo crime, fluía por suas veias e pelos chips eletrônicos de seu telefone. Ele sentiu uma nova forma de fraternidade eletrônica nojenta. Ele se sentiu pela primeira vez inorganicamente vivo. E organicamente morto. Soubemos que ele também, como seu telefone, era um filho das entranhas da África. Ele sabia que tinha vivido devorando todos os outros seres do planeta. Ele tinha sido um Africanívoro, um Sulamericanívoro, um Indianívoro, um Chinívoro… Terrívoro… ele tinha devorado tudo, e agora tudo o que ele tinha ingerido estava explodindo em seu pequeno cérebro branco europeu.
Ele se levantou e foi ao banheiro para vomitar. Ele colocou sua cabeça quente debaixo da torneira. A água bateu em seu crânio. Ele estava com frio e, logo depois, ou talvez ao mesmo tempo, um fogo se espalhou de seu peito até a testa que a água não conseguia acalmar. Ele levantou sua cabeça ainda molhada e se olhou no espelho. Então ele pensou ter visto que tinha um olho pendurado. Mais precisamente, ele olhou para seu olho direito como se seu olho esquerdo estivesse pendurado no osso supraorbital. Ele achava que a última etapa viral do capitalismo patriarcal-colonial era esta: a consciência como delírio digital. Ele se aproximou ainda mais do espelho e olhou para o fundo do osso orbital, o espaço deixado pelo globo ocular, e viu que havia, dentro de seu crânio, uma civilização imensa e minúscula. Ele viu centenas de corpos andando, pulando, brincando. Nem heterossexual nem homossexual, homem ou mulher, negro ou branco, animal ou humano. Ele entendeu que esta era uma sociedade governada por leis inteiramente novas. Ele pegou o olho e o colocou de volta em sua cavidade. Mas quando se deitou na cama não era mais o mesmo: agora sabia que por trás do que sempre viu, havia, invisível, uma outra vida.