Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2019/11/29/feminazies_1766375
Este é o novo insulto que os patriarcas coloniais jogam contra nós com toda a violência totalitária que lhes foi e ainda é própria.
Desde que as mulheres passaram a falar por si mesmas, os representantes do antigo regime sexual ficaram tão nervosos que agora são eles que perdem as palavras. Talvez seja por isso os patriarcas coloniais abriram seus livros de história necropolítica para procurar xingamentos e nos jogá-los à cara, e, por uma curiosa coincidência, escolheram o que sempre têm à mão: nazista!
Dizem que somos feminazis. Dizem que não podem pegar um elevador sozinhos com uma garota — que pena! — porque ela pode ser uma “feminazi” e acusá-los de estupro. Dizem não poder mais praticar livremente a arte viril do galanteio francês. Dizem que as mulheres tomaram o poder nas universidades, que ganham prêmios literários e que elas, as bêbadas dos gender studies, mandam no cinema e na mídia. Ao virarem de ponta-cabeça as posições de hegemonia e subalternidade, os pais do tecnopatriarcado conferem poder absoluto às minorias sexuais, mulheres, pessoas trans, homossexuais, bichas, gouines e corpos não binários; eles transferem fantasticamente para si a violência totalitária que lhes foi e ainda é própria. Como é possível utilizar o adjetivo “nazista” precisamente para os corpos que o nazismo considerava menos que humanos e dispensáveis?
Nada justifica o uso do adjetivo “feminazi” para se referir às demandas de reconhecimento das mulheres, trans, homossexuais ou pessoas de sexo não binário enquanto sujeitos políticos soberanos. Não acho que valha a pena se perder em um debate teórico. O melhor e mais eficaz dos argumentos é se ater aos fatos.
Quando violarmos e desmembrarmos o mesmo número de homens quanto vocês fizeram com mulheres, ou homossexuais ou transsexuais, simplesmente por serem homens ou por seus corpos ou práticas não se enquadrarem no que entendemos por uma boa masculinidade heterossexual submissa, aí sim podem nos chamar de feminazi. Quando decidirmos em um Parlamento composto apenas por mulheres, em um conselho administrativo composto apenas por mulheres, que um homem, pelo simples fato de sê-lo, deva receber menos que uma mulher independente do emprego ou das circunstâncias, aí sim podem nos chamar de feminazis. Quando forem proibidos de gozar fora de uma vagina sob pena de aborto e todas as suas práticas sexuais fora de sua cama heterossexual forem consideradas grotescas ou patológicas, aí sim podem nos chamar de feminazis. Quando suas pernas tremerem ao atravessar uma rua escura e procurarem com medo as chaves de sua porta em seus bolsos para entrar em casa o mais rápido possível, quando uma silhueta feminina no fim de um beco os fizerem virar e correr, quando as ruas de todas as cidades forem nossas, aí sim podem nos chamar de feminazis. Quando as escolas ensinarem só os livros de Gertrude Stein e Virgina Woolf e James Joyce e Gustave Flaubert forem considerados escritores “masculinistas”, quando os museus de arte dedicarem uma semana por ano a explorar a arte desconhecida dos “artistas masculinos” e quando os historiadores publicarem uma revista por década para falar sobre o papel dos “homens invisíveis da história”, aí sim, neste momento, vocês podem nos chamar de feminazis.
Quando psicólogos, psicanalistas e psiquiatras, especialistas em sexualidade humana, forem exclusivamente lésbicas radicais, e elas se reunirem em assembleias fechadas para determinar a diferença entre a masculinidade normal e a patológica, quando ao invés de comentar Freud e Lacan interpretarmos sua sexualidade masculina heterossexual, suas expectativas e seu prazer a partir das teorias de Valerie Solanas e Monique Wittig, aí podem nos chamar de feminazis. Quando suas mães, tias, primas, irmãs, amigas e esposas sempre tiverem algo a dizer sobre como se vestem, seu estilo, seu modo de falar, como são feios ou gordos, bonitos ou magros, constantemente, em voz alta, na frente de todos, e fingirem agradá-los com essa forma de controle, quando chamarmos essa forma de linguagem de “galanteio feminino”, aí pode nos chamar de feminazis. Quando sairmos em grupo para pagar um trabalhador do sexo precário que encontramos seminus nos acostamentos nos arredores das cidades, um jovem frequentemente imigrante que não conhece o direito ao trabalho, considerado como um criminoso, e uma força policial composta quase que exclusivamente por mulheres tiver direito de estuprá-lo e assediá-lo, aí sim, neste momento, enquanto pagamos cinco euros a um trabalhador do sexo por uma chupada no clitóris num carro, aí podem nos chamar de feminazis.
E mesmo se um dia os dominemos, exilemos, estupremos e matemos, se realizarmos uma façanha histórica de exermínio, expropriação e submissão comparável a sua, seremos simplesmente como vocês. Então sim, neste momento poderemos compartilhar com você o adjetivo “nazista”. Mas para estarmos no auge de suas técnicas políticas patriarcais precisaríamos de um imenso trabalho coletivo e do estabelecimento de um ódio organizado e uma indústria da vingança que, honestamente, não imagino e nem desejo. No momento, e digo isso com a objetividade que levaria um cientista a perceber a diferença entre o número de grãos de areia no deserto do Saara e o grão de areia que entrou em um olho, ainda há espaço. Muito, muito espaço.