Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/09/04/rentrez-courez_1798632
Voltem, voltem, apressem-se, voltem, mas para onde? Voltem, retornem aos seus postos, para que ninguém possa tirar as cadeiras que deixaram vazias em suas instituições, em seus escritórios, em suas empresas, em suas start-ups, em suas escolas. E se algum gênio maligno deixasse sua cadeira intocada e tirasse as instituições, os escritórios, as empresas, as start-ups, as escolas? Para onde voltariam? Pouco importa, a questão é voltar atrás. Encontrar sua cadeira, sentar-se nela, assumir seu lugar. Cadeiras e mais cadeiras alinhadas e cheias, a um metro e meio de distância, flutuando no meio do nada.
Voltem, voltem, apressem-se. Deixem os lojistas colocarem os novos produtos de outono nas prateleiras, deixem que eles se apressem no caso caso da Covid voltar para levar suas vendas com ela. A falta é arranjada, organizada, na produção social. A produção nunca é organizada de acordo com uma falta real, é a falta que vem se propagar por toda parte, de acordo com a organização do trabalho. Por isso voltem imediatamente ao trabalho, voltem para pegar sua carta de demissão, sua parte da falta. Corram para seu trabalho antes que ele desapareça, apressem-se para pedir um empréstimo e aumentem sua dívida.
Voltem, voltem, voltem rapidamente de suas férias a menos de 100 quilômetros de casa, corram para seus postos com sua máscara pendurada no pulso como uma pulseira dispersora de vírus. Vocês gostariam de ter ido para uma ilha deserta no meio do mar, muito longe, um lugar onde não se pode ver Lampedusa ou Calais, mas tiveram de ficar na Normandia. E agora a Normandia parece mais distante de Paris do que nunca. Voltem para suas cidades, voltem para a poluição e o barulho delas, antes que seus pulmões e ouvidos se acostumem com a sinfonia do campo. Tentem voltar para os labirintos do metrô, suportar as horas intermináveis de reuniões. O que é “presencial” agora se tornou mais virtual que o virtual. Voltem para se submeter às perguntas dos funcionários públicos, tomem novamente as filas da agência pública de empregos, voltem rapidamente para suas tele-vidas. Deixem o nariz bem aberto para que uma figura humana escondida atrás de um macacão higiênico possa enfiar um cotonete e esfregá-lo na beirada seu cérebro para que, com um pouco de sorte, ela descubra que estão vivos e com resultado negativo. Deixem seus filhos, pequenos corpos quase imunes, voltarem às escolas, lugar em que nada que aprenderem vai salvá-los do ecocídio de seus anciãos.
Voltem, voltem, voltem rápido, voltem para suas vidas antigas. Voltem para a violência policial bem medida: vocês matam na fronteira, afundam as jangadas no mar e joga fora aqueles que chegam já sem sapatos; vocês batem, enfiam os joelhos no peito e trancam trabalhadores negros e árabes nos matadouros — no sentido literal e figurado; enquanto no centro da cidade vocês protegem o povo branco do vírus. Para vocês, Segurança Social, para eles, a socialização dos riscos. Para vocês, a recuperação econômica e a democracia neoliberal, para eles, a recuperação da segurança. Voltem para sua tradição fascista, se é que vocês, franceses, também têm uma. Que os führers voltem. Que voltem também de suas férias em suas ilhas desertas, longe de Lesbos e Lampedusa, Trump, Bolsonaro, Erdogan, Duda, Orbán, Putin e Lukashenko, enquanto o Novitchok leva a alma de Alexei Navalny e a prisão acaba com o corpo de Ebru Timtik. E já que estamos nisso, deixem Sarkozy voltar também, deixem Cecília voltar também, desculpe, eu quis dizer Carla, deixem seu violão e sua voz doce e cruel voltarem também.
Voltem, voltem apenas para perceber que aquilo a que vocês voltam com tanto esforço não tem mais sentido. Vocês não podem voltar a uma vida normal porque o que costumavam chamar de vida normal não existe durante uma mudança de paradigma, porque, mesmo que as coisas ainda pareçam as mesmas, elas não são. Mesmo as palavras que parecem ser pronunciadas da mesma forma mudaram seu significado. O problema é que ninguém sabe ainda que novo significado será este. Será que um algoritmo decidirá isso? Será anunciado no Instagram? Ou será decretado? Voltem para casa com suas malas carregadas de palavras e coisas, só para descobrir depois que não têm as definições corretas.
Não, a pressa não vale a pena. Não se pode voltar atrás. Porque isso seria como tentar retornar para um ponte epistemológica que acabou de ruir. O mundo que estava atrás de nós, aquele emaranhado de signos integrados que você acredita que são reais, desapareceu. As linhas que separam os signos sensíveis e inteligíveis se moveram. Não se pode voltar atrás. A deriva do migrante para o nada é um modelo político melhor do que o do cidadão europeu ou norte-americano normativo que simplesmente quer ir para casa. O terror e o desejo que animam o exílio estão mais próximos da mutação necessária para enfrentar o túnel no qual nos afundamos coletivamente.
Estamos praticando uma nova migração para lugar algum, onde não há mais um bom pastor ou um Estado-nação para nos receber. É hora de ir ainda mais longe, não voltar, mas subir a montanha, deixar os deuses do capitalismo nas cidades, ir sem pai nem mãe, sem natureza, apenas com os vivos e os mortos. A instituição ou o Estado-nação, a indústria petroquímica e farmacêutica, os gigantes da informática, podem nos dar algo melhor? Sem chance. Não voltem.