Texto original: https://www.liberation.fr/chroniques/2020/06/19/tout-doit-changer_1791833
Tenho pena dos que acham que nada pode mudar. Eles dizem que as coisas continuarão sendo como antes, e quando falam de antes, este tempo aparentemente passado soa como uma profecia. Mas o que eles querem dizer com “antes”? Antes de quem ou antes do quê? Antes da explosão do Covid-19? Antes das sociedades opulentas do Norte capitalista deixarem seus avós morrerem em asilos e mandarem populações racializadas pra fazer o trabalho de cuidado e produção no auge da pandemia? Ou antes de mais de 60 000 pessoas se manifestarem na França contra o racismo institucional e as violências policiais? Ou antes do coração de Adama Traoré parar sob o peso de três policiais que o imobilizaram brutalmente? Ou antes de George Floyd ter sido sufocado pela polícia de Mineápolis? Antes de Rayshard Brooks, outro jovem afro-americano, ter sido morto pela polícia enquanto esperava na fila de um fastfood em seu carro? Antes de Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi lançarem o coletivo de desobediência civil Black Lives Matter para lutar contra as violências policiais? Ou eles poderiam estar falando de antes de Lamia Beard, Ty Underwood, Yazmin Vash Payne e Taja Gabrielle de Jesus, quatro mulheres trans racializadas, serem mortas nos Estados Unidos? Ou talvez eles vão muito mais pra trás e pensem em antes da revolução dos escravos no Haiti? Ou antes de Toussaint Louverture morrer de frio e fome na prisão no forte de Joux? Antes de Susie King Taylor abrir a primeira escola nos Estados Unidos para ensinar os escravos fugidos a ler? Ou antes de Aïssa Maïga, Adèle Haenel e Céline Sciamma se rebelarem contra o funcionamento patriarco-colonial da indústria cinematográfica francesa? Ou antes dos milhares de tweets de mulheres de todos os continentes denunciarem os estupros e as violências sexuais? Ou antes da cantora lésbica egípcia Sara Hegazy se suicidar em seu exílio canadense? Ou talvez eles pensem em antes das mulheres brancas conseguirem o direito ao voto nas sociedades ditas democráticas? Ou mesmo antes de Anna Göldlin, a última “feiticeira” da Europa, ser condenada à morte em 1782 para que seu empregador pudesse esconder o fato de que ele havia a forçado a manter relações sexuais? Ou antes da revogação do direito dos pais de família de dispor da vida de suas esposas e filhos?
Tenho pena dos que acham que nada podem mudar. Eles dizem que as coisas não podem ficar piores que antes. Antes de quem, antes do quê? Antes da Frontex se instalar nas margens do Mediterrâneo e centenas de milhares de migrantes se afogarem? Antes da crise do subprime em 2008? Ou antes da onda de privatizações neoliberais e demissões abusivas? Ou antes das revoltas suburbanas de 2005? Ou antes dos militantes do Black Lives Matter derrubarem a estátua de Edward Colston em Bristol? Ou antes de 50 000 homens, mulheres e outros africanos serem trazidos para a costa inglesa para serem comprados e vendidos como escravos? Ou antes ainda da Inglaterra se tornar um império próspero graças à expropriação colonial? Ou antes do ministro francês Colbert legalizar no Code noir [Código negro] “a venda de negros como bens móveis”? Ou antes da invenção da noção de raça como uma ficção da ciência colonial que permitiu legitimar a escravidão e a economia de plantação? Ou antes da invenção das noções de heterossexualidade e homossexualidade enquanto normalidade e patologia? Ou antes da despatologização da homossexualidade em 1975? Ou antes da politização das pessoas trans? Ou antes dos judeus serem presos nos guetos e da organização de forças políticas e militares para exterminá-los? Ou antes da derrota de Hitler e do desmantelamento dos campos de concentração? Ou antes do lançamento das bombas de Hiroshima e Nagasaki? Ou antes da conferência de Bandung e da entrada na geopolítica dos primeiros países descolonizados? Ou antes de Frantz Fanon renunciar a sua identidade francesa e se tornar argelino? Ou antes da guerra de independência da Algéria? Ou antes de Martin Luther King fazer a América sonhar? Ou antes mesmo de seu assassinato? Ou antes do assassinato de Malcom X? Ou antes de Angela Davis ser condenada à morte? Ou antes dela ser libertada? Ou antes dela ocupar a cadeira de história da consciência na universidade de Santa Cruz na Califórnia? Ou antes de Obama ser eleito presidente dos Estados Unidos? Ou eles falam de antes da Frente Nacional, hoje chamada Reagrupamento Nacional, obter 21,3% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial de 2017? De qual antes eles falam? Antes da invenção do dinheiro? Ou antes da hominização? Ou antes do big bang?
Para Adama Traoré, George Floyd, Rayshard Brooks, Lamia Beard, Ty Underwood, Yazmin Vash Payne e Taja Gabrielle de Jesus… não havia um antes que já não fosse tarde demais, e agora não há mais depois. O tempo não é o mesmo para todos. Para alguns, para os corpos violentamente racializados e sexualizados, os corpos negros, migrantes, os corpos das mulheres, dos homossexuais, dos transsexuais, para os velhos, os trabalhadores pobres, os doentes, os deficientes… cada minuto é uma luta, cada memória é uma marca que tenta desesperadamente escapar do apagamento. O privilégio do poder patriarco-colonial é também o direito ao tempo e à história.
Nada voltará a ser como antes, porque nós fomos aos milhares às ruas e fizemos o que ninguém esperava de nós: olhamos no rosto do poder que nos objetifica e dissemos “nunca mais”. Nada voltará a ser como antes porque este é um levante mundial de corpos vivos contra a necropolítica: contra a utilização da violência e da morte como forma de governo das populações subalternas. A história de antes foi parada por um instante. Isso é uma revolução: uma agitação do tempo que detém a ensurdecedora repetição da opressão para que um novo agora possa surgir. O tempo da revolução começou. Tudo deve mudar. Você deve mudar. O tempo daqueles que antes não tinham direito à história começa.