(Traduzido de Wittig, Monique, The straight mind and other essays. Boston: Beacon Press, 1992, p. 1–8)
A perenialidade dos sexos e a perenialidade dos escravos e senhores procedem da mesma crença e, como não há escravos sem senhores, não há mulheres sem homens. A ideologia da diferença sexual funciona como censura em nossa cultura ao mascarar como natureza a oposição social entre homens e mulheres. As categorias masculino/feminino e macho/fêmea servem para esconder o fato de que as diferenças sociais sempre pertencem a uma ordem econômica, política e ideológica. Todo sistema de dominação estabelece divisões em um nível material e econômico. Além disso, as divisões são abstraídas e transformadas em conceitos pelos senhores e depois pelos escravos, quando estes se rebelam e começam a lutar. Os senhores explicam e justificam as divisões estabelecidas como o resultado de diferenças naturais. Os escravos, quando rebelam e começam a lutar, leem as oposições sociais a partir dessas chamadas diferenças naturais.
Não há sexo. Há apenas o sexo oprimido e o opressor. É a opressão que cria o sexo e não o contrário. O contrário seria dizer que o sexo cria a opressão, ou que a causa (origem) da opressão seria o próprio sexo, na divisão natural dos sexos anterior à (ou fora da) sociedade.
O primado da diferença tanto constitui nosso pensamento que nos previne de virarmos para dentro da questão e questioná-la, independente do quão necessário seja apreender a base que a constitui. Apreender a diferença em termos dialéticos é fazer aparecer os termos contraditórios a serem sintetizados. Entender a realidade social de modo materialista dialético é apreender a termo as oposições entre classes e fazê-las se encontrarem sobre a mesma cópula (um conflito na ordem social), que é também uma síntese (a abolição na ordem social) das aparentes contradições.
A luta de classes é precisamente o que sintetiza as contradições entre duas classes opostas ao aboli-las ao mesmo tempo que as constitui e revela como classes. A luta de classes entre homens e mulheres, que deveria ser feita por todas as mulheres, sintetiza as contradições entre os sexos abolindo-os ao mesmo tempo em que os fazem entendidos. Devemos perceber que as contradições sempre pertencem à ordem material. A ideia central pra mim é que antes do conflito (rebelião, luta) não há categorias de oposição, só de diferença. Não é até que a luta se inicia que a realidade violenta das oposições e a natureza política das diferenças se tornam visíveis. Enquanto as oposições (diferenças) aparecerem como já dadas, antes de todo pensamento, “natural” — enquanto não houver conflito e luta — não há dialética, não há mudança ou movimento. O pensamento dominante se recusa a virar pra dentro de si mesmo para apreender aquilo que o questiona.
E, claro, enquanto não existir a luta das mulheres não há conflito entre homens e mulheres. É o destino das mulheres executar três quartos do trabalho da sociedade (na esfera pública e também na privada) e o trabalho corporal da reprodução de acordo com uma velocidade [rate] preestabelecida. Ser assassinada, mutilada, física e mentalmente torturada e violentada, ser estuprada, espancada, ser forçada a se casar é o destino das mulheres. E o destino supostamente não pode ser mudado. As mulheres não sabem que são totalmente dominada pelos homens, e quando se aperceberem disso, “mal podem acreditar”. E frequentemente, como a última carta na manga antes da realidade nua e crua, elas se recusam a “acreditar” que os homens as dominam com total ciência (porque a opressão é muito mais horrível para os oprimidos que para os opressores). Os homens, por sua vez, sabem perfeitamente que dominam as mulheres (“Somos os senhores das mulheres”, disse André Breton) e que são treinados para isso. Eles não precisam expressá-lo o tempo todo, já que mal se pode falar da dominação de sua propriedade.
O que é este pensamento que recusa sua inversão, que nunca questiona o que o constitui primariamente? Este é o pensamento dominante. É uma ideia que afirma um “já dado” dos sexos, algo anterior a todo o pensamento, à sociedade. Este é o pensamento dos que mandam nas mulheres.
As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que comanda a força material da sociedade é, ao mesmo tempo, a força intelectual dominante. A classe que possui os meios de produção material a sua disposição tem controle ao mesmo tempo dos meios de produção mental, para que assim, falando genericamente, as ideias daqueles que não possuem os meios de produção mental sejam subordinadas. As ideias dominantes não são nada além da expressão ideal das relações materiais dominantes, pensadas como ideias[:] das relações que fazem de uma classe a dominante, ou seja, a ideia de sua dominação. (Marx e Engels, A ideologia alemã)
Esta lógica baseada no primado da diferença é o pensamento da dominação.
A dominação dá às mulheres um corpo de dados, de “naturezas” [givens], de a prioris, que, ainda mais por serem questionáveis, formam uma construção política imensa, uma rede estreita que a tudo afeta, nossos pensamentos, gestos, ações, trabalho, sentimentos e relações.
A dominação nos ensina de todos os lados que há:
- antes de todo pensamento e sociedade, “sexos” (duas categorias de indivíduos nascidos) com uma diferença constitutiva e que possuem consequências ontológicas (a abordagem metafísica),
- antes de todo pensamento, de toda ordem social, “sexos” com diferenças “naturais” ou “biológicas” ou “hormonais” ou “genéticas” que possuem consequências sociológicas (a abordagem científica),
- antes de todo pensamento, de toda ordem social, uma “divisão natural do trabalho na família”, uma “divisão do trabalho [que] nada foi além da divisão do trabalho no ato sexual” (a abordagem Marxista).
Qualquer que seja a abordagem, a ideia permanece basicamente a mesma. Os sexos, por causa de sua diferença constitutiva, devem inevitavelmente desenvolver relações de categoria em categoria. Essas categorias, que pertencem à ordem natural, não podem ser chamadas de sociais. Essa ideia que impregna todos os discursos, incluindo os de senso comum (a costela de Adão ou Adão é, a Eva é a costela de Adão), é a ideia da dominação. Seu corpus discursivo é constantemente reforçado em todos os níveis da realidade social e esconde o fato político da subjugação de um sexo pelo outro, o caráter compulsório da própria categoria (que constitui a primeira definição do ser social em caráter civil). A categoria sexo não existe a priori, antes da sociedade. Enquanto uma categoria de dominação ela não pode ser produto da dominação natural, mas sim da dominação social das mulheres pelos homens, pois há apenas dominação social.
O sexo é a categoria política que funda a sociedade enquanto heterossexual. Como tal, ela não trata do ser mas de relações (já que homens e mulheres são resultados de relações), apesar de os dois aspectos sempre se confundirem. A categoria sexo é a que considera “natural” a relação base da sociedade (heterossexual) e a partir da qual metade da população, as mulheres, são “heterossexualizadas” (o feitio das mulheres é como o dos eunucos, a reprodução dos escravos e dos animais) e submetidas a uma economia heterossexual. A categoria sexo é o produto de uma sociedade heterossexual que impõe às mulheres a obrigação da reprodução da “espécie”, isto é, a reprodução da sociedade heterossexual. A reprodução compulsória da “espécie” pelas mulheres é o sistema de exploração a partir do qual a heterossexualidade é informada economicamente. A reprodução é essencialmente o trabalho, a produção das mulheres, a partir do qual a apropriação masculina de todo o seu trabalho procede. Deve-se incluir aqui a apropriação do trabalho que é “naturalmente” associado à reprodução, a criação de crianças e os afazeres domésticos. Essa apropriação do trabalho das mulheres é feita do mesmo modo como a apropriação do trabalho da classe trabalhadora pela classe dominante. Não se pode dizer que uma dessas duas produções (reprodução) é “natural” enquanto a outra é apenas social. Esse argumento é só a justificativa teórica e ideológica da opressão, um argumento para fazer as mulheres acreditarem que antes mesmo da sociedade, e em todas as sociedades, elas estão sujeitas a essa obrigação de reprodução. Entretanto, como não sabemos nada sobre trabalho, sobre produção social, fora do contexto da exploração, nada sabemos sobre a reprodução da sociedade que esteja fora de seu contexto de exploração.
A categoria sexo é o produto de uma sociedade heterossexual em que os homens se apropriam da produção e reprodução das mulheres e seus corpos através de um contrato chamado certidão de casamento. Compare este contrato ao que associa um empregador ao empregado. O contrato que liga a mulher ao homem é, em princípio, vitalício, e apenas a lei pode rompê-lo (divórcio). Ele dá à mulher algumas obrigações, inclusive trabalho não remunerado. O trabalho (rotina doméstica, criação de crianças) e as obrigações (entrega de sua reprodução em nome de seu marido, coabitação dia e noite, coito forçado, atribuição de residência implícita no conceito de “entrega de domicílio conjugal” [conjugal domicile]) significam a entrega da mulher e seu corpo a seu marido. Que a mulher dependa diretamente de seu marido está implícito na política policial de não intervir quando um marido bate em sua esposa. A polícia intervém com a acusação de assédio e agressão apenas quando um cidadão bate em outro. Mas uma mulher que assina um contrato marital deixou de ser uma cidadã comum (protegida pela lei). A polícia expõe abertamente sua aversão ao envolvimento em questões domésticas (em oposição às civis), onde a autoridade do estado não deve intervir diretamente já que passa pela [autoridade] do marido. É preciso ir a abrigo de mulheres agredidas para se dar conta do quão longe essa autoridade pode ir.
A categoria sexo é o produto da sociedade heterossexual que transforma metade da população em seres sexuais, já que o sexo é uma categoria em que as mulheres não podem se colocar de fora. Onde quer que estejam, o que quer que façam (incluindo trabalhar no setor público), elas são vistas (e feitas) como sexualmente disponíveis para os homens, e elas, seios, bunda, fantasia, devem ser visíveis. Elas devem usar sua estrela amarela e sustentar um sorriso constante dia e noite. Deve-se considerar que toda mulher, casada ou não, tem um período de serviço sexual obrigatório, um serviço sexual que podemos comparar ao militar, e que pode variar de um dia, um ano, vinte e cinco anos ou até mais. Algumas lésbicas e freiras escapam, mas há poucas, apesar do número ser crescente. Apesar de as mulheres serem visíveis como seres sexuais, são invisíveis como seres políticos, e devem aparecer o mínimo possível, sempre com alguma desculpa. É só ler entrevistas com mulheres incríveis para vê-las se desculpando. E os jornais ainda hoje dizem “dois estudantes e uma mulher”, “dois advogados e uma mulher”, “três viajantes e uma mulher” foram vistos fazendo isso ou aquilo. A categoria sexo se agarra às mulheres, elas não podem existir fora dela. Só elas são sexo, o sexo, e foram feitas sexo em suas mentes, corpos, atos, gestos; até mesmo seus assassinatos e espancamentos são sexuais. Claro, a categoria sexo abraça firmemente as mulheres.
A categoria sexo é totalitária, e para se provar tem suas inquisições, cortes, tribunais, corpus legal, terrores, torturas, mutilações, execuções, polícia. Ela molda a mente e o corpo já que controla toda produção mental. Ela agarra nossa mente de tal modo que não podemos pensar fora dela. É por isso que devemos destrui-la e começar a pensar para além dela se quisermos pensar, já que é necessário destruir os sexos como uma realidade sociológica se quisermos começar a existir. A categoria sexo ordena a escravidão das mulheres e funciona especificamente, como funcionou para os escravos negros, através de uma operação de redução, de tomada da parte pelo todo, a parte (cor, sexo) pela qual todo grupo humano deve passar, como numa tela. Perceba que em questões civis a cor e o sexo devem ser “declarados”. Entretanto, por causa da abolição da escravidão, a “declaração” de “cor” é considerada discriminatória. Mas o mesmo não ocorre com a “declaração” do “sexo”, que nem toda mulher sonha em abolir. Eu digo: está na hora de o fazermos.