Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/03/01/l-ancienne-academie-en-feu_1780215
Defender e recompensar Polanski é uma urgência simbólica; protege não “a liberdade da arte”, mas a submissão à soberania heteropatriarcal. Algo frágil e grotesco frente ao poder de Adèle Haenel.
Uma cerimônia do César geralmente não possui nenhum interesse filosófico ou político. Entretanto, em um momento de reorganização das políticas de gênero e sexualidade, uma gala televisionada para dois milhões de espectadores adquire a consistência de um ritual político, uma “paralinguagem social”, para usar as palavras de Lévi-Strauss, que teatraliza publicamente as posições do poder, pondo em cena sua crise e sua reinscrição normativa, mas também abrindo a possibilidade de fazer visível seu fracasso.
Confrontado com uma crítica sem precedentes pela dominação masculina, das primeiras acusações do #MeToo às declarações públicas de Adèle Haenel, a cerimônia do César de 28 de fevereiro se converteu em um ritual destinado à restauração mítico-mágica da soberania heteropatriarcal em crise de seus chefes. A cerimônia encenou um dos ritos constitutivos da cultura heteropatriarcal dominante que se pode chamar tecnicamente de “um ritual de exaltação do estuprador e de punição da menina estuprada (falante)”. O que é interessante neste ritual é que ele não foi constituído por uma elite masculina para governar um conjunto de corpos femininos subjugados, mas que ele é uma prática social em que participam voluntária e ativamente os assim chamados governantes e governados, de modo que é por essa repetição ritual que suas posições sexuais e de gênero são fixadas e definidas — ou negadas.
A cerimônia do César foi um ritual heteropatriarcal de restauração mítico-mágica do estuprador Polanski e de exclusão e morte da vítima que fala, Adèle Haenel. O heteropatriarcado se caracteriza pela definição necropolítica de soberania masculina, ou seja, pela ideia de que um corpo adulto branco é masculino na medida em que pode legitimamente utilizar a violência sexual contra todo outro corpo marcado como feminino, não branco ou infantil. Nesse sentido, o heteropatriarcado não considera apenas o estupro como uma possibilidade, mas o exige, ao menos conceitualmente, como condição de possibilidade do exercício da soberania masculina heterossexual. É por isso que, na ordem heteropatriarcal, Polanski não aparece como um criminoso, mas como uma vítima da rebelião feminista. Pobre Polanski: ele sonha em ser o Dreyfus do movimento #MeToo. O argumento da separação do homem do artista — que não apenas o salva, mas, mais ainda, recompensa Polanski — esconde sua posição estratégica dentro da ordem heteropatriarcal. Polanski não é protegido por ser um artista. Ele é protegido por ser um peso pesado da indústria cinematográfica, um homem branco e heterossexual. É sua condição como chefão e heteropatriarca da indústria cinematográfica e não sua condição de artista que o protege. Defender e recompensar Polanski é, portanto, uma urgência simbólica, para proteger não “a liberdade da arte”, mas a submissão à soberania heteropatriarcal. Essa é uma tarefa tão urgente quanto coletiva, e é por ela que continuamos convocando os homens e as mulheres da academia, e também os Brancos e os Negros, e também os Árabes e os Judeus. O grande capital heteropatriarcal prefere a submissão universal às diferenças identitárias.
Em segundo lugar, o heteropatriarcado se define pela negação da soberania sexual e política das mulheres fora dos limites da relação heterossexual e do prazer masculino. Então, a menina estuprada, o menino estuprado, o homem ou a mulher ou trans estuprados não têm o direito de falar e não são mais considerados sujeitos políticos quando o fazem. Por consequência, a homossexualidade feminina é considerada sexualmente anormal e deve permanecer politicamente invisível. É possível representar a homossexualidade feminina como um fantasma do desejo masculino, mas não como uma posição política e sexual autônoma. Adèle Haenel quebrou essas duas regras do heteropatriarcado: primeiro, ela falou, e o fez publicamente sobre os abusos sexuais dos quais foi objeto. Depois, ela afirmou publicamente sua preferência sexual pelas mulheres e incarnou o desejo sexual lésbico em Portrait de la jeune fille en feu [Retrato de uma jovem em chamas]. Adèle é uma Joana D’Arc do movimento #MeToo francês que a academia se apressou para queimar ritualmente durante a cerimônia de premiação. Mas como todo ritual coletivo, esse também foi suscetível a resultar em um fracasso performativo.
O que está em jogo aqui não é a honra do velho e corrupto Polanski, mas a hegemonia heteropatriarcal da academia de cinema. O cinema é importante não porque é uma “arte”, mas porque é, como explicou Teresa de Lauretis, uma das tecnologias fundamentais para a fabricação e distribuição dos códigos do gênero e da sexualidade. Ele é uma das máquinas culturais centrais na produção do imaginário audiovisual heteropatriarcal: uma usina de representações normativas (ou dissidentes) de gênero, de sexualidade e de raça. A função dessa tecnologia é redobrada por sua posição hegemônica dentro da indústria cognitiva do capitalismo mundial. Em outros termos, o cinema é, para a indústria cultura, o que a indústria farmacêutica é para as políticas de normalização da reprodução sexual.
Pode-se então perguntar por que continuamos esperando ingenuamente que uma das indústrias mais poderosas e normativas do planeta tenha um potencial crítico e emancipatório. Poderíamos imaginar uma cerimônia de premiação da indústria petroleira em que Davi Kopenawa Yanomami entregasse o prêmio do antropoceno à Total?
A academia sonha que a mulher estuprada tenha a mesma posição em sua indústria que a vaca na indústria alimentar. Como a vaca, há mulheres heterossexuais em todo o cinema, celebra-se seus corpos… mas acima de tudo, comemos seus corpos (dentro e fora da tela). A academia de cinema simplesmente parece esquecer que, diferente da vaca, a mulher estuprada produz um conhecimento político de seu próprio processo de submissão. A mulher estuprada fala, deseja e se torna sujeito político. É essa a revolução a que assistimos. É essa emancipação do objeto do desejo (e da violência) do cinema que a academia não pode suportar.
Essa cerimônia do César foi caracterizada pela exacerbação ritual de todas as suas contradições, pela espetacularização pop do sofrimento, mas também da submissão da vítima e finalmente pela exaltação do criminoso. E nessa corografia [coreografia?] cada um faz seu papel. Como todo ritual de restituição de uma hegemonia em crise, a cerimônia da academia deve induzir a unificação de teorias disjuntas, a superação dos antagonismos e contradições. Nas palavras de Lévi-Strauss, por uma ação ritual, “todos os participantes são levados a passar para o lado do vencedor”. E é isso que acontece quando Mathieu Kassovitz fala da necessidade de preservar a sedução entre homens e mulheres no cinema — imagine se, no lugar de Mathieu Kassovitz, estivesse Céline Sciamma falando do direito das mulheres a continuar seduzindo os homens e do direito das mulheres a seduzir as mulheres no cinema! Mas isso não está acontecendo. O que acontece é o que Kassovitz nos explica, enfatizando seu papel de pai heterossexual ao consultar sua filha, para nos dar um elogio da sedução masculina que Adrienne Rich chamaria de “heterossexualidade compulsória” da indústria do cinema.
Também foi necessário, em um bom ritual de exaltação do estuprador, uma pequena dose de crítica da pedofilia, como uma vacina homeopática. É o que acontece quando Swann Arlaud toma a palavra para falar dos fatos que inspiraram seu papel… mas sem nunca mencionar Polanski. A mesma superação das contradições se opera enquanto duas mulheres, Emmanuelle Bercot e Claire Denis, anunciam o nome do vencedor do César de Melhor Diretor. O resto é um exercício de obediência aos ditames do gênero, do sexo e da raça: Anaïs Demoustier e a equipe de Ladj Ly celebram suas vitórias sem dizer uma palavra sobre Polanski. O capitalismo heteropatriarcal não é uma batalha dos homens contra as mulheres. Nem todos os homens são predadores, nem todas as mulheres são feministas. Ele também não é uma associação de minorias para criticar a norma. Nenhuma indústria tolera trabalhadores dissidentes. É uma batalha pelo monopólio da soberania heteropatriarcal e o controle das forças de produção contra qualquer um que mostre dissidência, seja homem, mulher, trans, não-binário, racializado ou branco. E que o cinema continue uma celebração capitalista e heteropatriarcal!
De frente ao estuprador premiado, de frente à indústria do cinema, Adèle está só. A menina abusada que fala em público deve ser isolada, exposta, como uma bruxa, se não literalmente queimada em público, ao menos simbolicamente cremada. De suas cinzas renasce Polanski na forma de uma fênix na qual ninguém acredita no cinema, mas que ninguém ousa denunciar.
Até então o ritual pareceu efetivo.
Adèle estava nessa cerimônia, mais que nunca uma menina em chamas.
Porque o ritual falhou. A menina estuprada não é mais um corpo dócil, passivo e silenciado. Ela não é mais uma vítima. Ela é um sujeito político.
Adèle se levanta, suas costas retas, seus olhos brilhantes, diz “que vergonha” e sai da sala.
É esse o ponto culminante do ritual de punição da menina estuprada que fala e da exaltação do estuprador. Mas esse instante é também o fracasso performativo do ritual. A academia quis impor sua arquitetura heteropatriarcal, mas ela se provou frágil e grotesca. E ao fazê-lo, ela abriu a porta para a resistência e a crítica.
Adèle, estamos com você. Quando se levanta, nos levantamos e saímos da sala com você. O ritual se inverte por sua força: a academia está em chama e você está viva. Porque se a indústria do cinema pertence aos chefes e aos estupradores, o futuro pertence aos estuprados e estupradas dissidentes que saem da sala. E que a festa continue em outro lugar!