Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/04/24/les-mots-que-je-ne-peux-pas-vous-dire_1786358
Neste período de confinamento, além do encontro diário que o filósofo organiza por vídeo com seus pais, restaria dedicar-lhes um livro suavizado de todas as palavras da linguagem de gênero e sexualidade. Um trabalho necessariamente heroico.
Durante o confinamento, em tempos de coronavírus, entre a desordem do tempo e a reorganização das tarefas diárias causada pela paralisação geral, adquiri um novo hábito. Todos os dias às 20h30, depois de sair na varanda para aplaudir ou gritar, atendo à chamada de vídeo dos meus pais. Eles estão em uma cidade no norte de Castela, e eu em um bairro de Paris. Antes do coronavírus, falávamos a cada dois meses, por ocasião de eventos importantes, festas, aniversários. Mas agora a chamada diária se tornou uma bomba de oxigênio. É o que minha mãe, que sempre teve talento para o melodrama, diz assim que a tela se abre: “Ver você é como sair e respirar”.
Meu pai tem 90 anos, é um homem dinâmico que antes de ser preso andava 8 quilômetros por dia. É também um homem frio: uma criança abandonada pelo próprio pai, que cresceu sem afeto, convencido de que o trabalho era sua única razão de existir. Embora os mais velhos não estejam autorizados a sair, meu pai desce todos os dias para comprar uma baguete a 200 metros da casa, usando suas luvas e máscara. “Ninguém pode lhe negar isso”, diz minha mãe. E ela acrescenta, quando ele se afasta: “Talvez nunca mais possamos caminhar juntos nas ruas. Esta pode ser a sua última primavera. Ele tem de poder sair”.
Minha mãe se dirige a mim às vezes no masculino e às vezes no feminino, mas ela sempre me chama de Paul. Eu gosto quando meu pai pergunta: “Quem está ligando?” e minha mãe diz: “É nossa Pol”. Ela acha que se escreve assim. Toda vez que eu ligo, meu pai inspeciona meu rosto na tela como se fosse para examinar as mudanças produzidas pela minha transição de gênero. Mas também como se ele estivesse procurando a cara dele na minha: “Você se parece cada vez mais com seu pai”, diz minha mãe. A transição destacou a semelhança dos nossos traços, como se trouxesse à tona um fenótipo que o estrogênio havia empurrado para o reino do invisível. Eu não lhe digo, mas esta nova semelhança é tão perturbadora para mim quanto é para ele.
Outro dia meu pai me perguntou: “Por que você não deixa a barba crescer no rosto todo?” “Porque ela não cresce de maneira uniforme”, expliquei. “Comecei a tomar testosterona aos 38 anos, e quando os poros da pele estão fechados, o cabelo não consegue crescer”. “Que mau negócio! Comprou gato por lebre”, respondeu ele. “Deixe-o em paz, não mexa com sua barba. Ele falou da sua?”, retrucou minha mãe. Quando lhes falo que estou corrigindo as provas de um novo livro que sai em junho, minha mãe me pergunta, com um interesse que revela seu desejo, a quem vou dedicá-lo. “A Judith Butler.” “Quem é esta senhora?” Explico-lhe que elu (1) não é uma senhora, que é uma pessoa que não se identifica nem como homem nem como mulher, e que acabou de obter seu certificado como pessoa não binária na Califórnia. E que isso é um acontecimento, como quando eu consegui minha mudança de sexo legal em 2017. Explico-lhes que elu é o/a filósofo através de quem eu soube que mesmo aqueles de nós considerados desviantes ou degenerados poderiam fazer filosofia. “Mas se não é um homem ou uma mulher”, pergunta-me meu pai, “o que é?”. “É Livre”, eu lhe digo. “Que mau negócio! Comprou gato por lebre”, repete ele. Nós três rimos. Antes de desligar, meu pai, que nunca disse que me amava, chegou muito perto da tela e me deu um beijo. Eu não soube como reagir ao seu gesto inesperado. “Esperamos por você amanhã”, diz minha mãe, “para nosso passeio juntos”.
Após o último encontro com eles, ouvindo o pedido implícito de minha mãe e vendo-os tão frágeis e de repente tão carinhosos, pensei que um dia gostaria de dedicar um livro a eles. E então me ocorreu que para que eles pudessem desfrutar dessa dedicatória sem se ofenderem com o conteúdo, eu precisaria ser capaz de escrever um livro no qual as palavras homossexual e homossexualidade, as palavras transexual, transgênero e transexualidade, ou a palavra sexo não aparecessem, nem sexualidade, nem estupro, nem trabalhadoras sexuais, nem prostituição, nem aborto, nem penetração, nem dildo, nem ânus, nem ereção, nem pênis, nem pau, nem vagina, nem vulva, nem clítoris, nem tetas, nem mamilos, nem foda, nem ejaculação, nem aids, nem orgasmo, nem boquete, nem sodomia, nem masturbação, nem perversão, nem bicha, nem lésbica, nem lesbianismo, nem sapatona, nem gay, nem bofinho, caminhoneira, nem puta, nem mastectomia, nem faloplastia, nem doença mental, nem disforia de gênero, nem psicose, nem esquizofrenia, nem depressão, nem pornografia, nem farmacopornografia, nem merda, nem vício, nem drogas, nem toxicomania, nem alcoolismo, nem maconha, nem heroína, nem cocaína, nem metadona, nem morfina, nem crack, nem dealer, nem suicídio, nem prisão, nem criminoso… E eu acho que o próprio exercício de escrita seria heroico. O livro seria uma longa perífrase barthesiana, mas também uma boa distração em tempos de confinamento.
(1) Pronome sem gênero. [NT: ‘iel’, em francês, é um pronome-neologismo, assim como “elu” em português]