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BIXALOKA

"É um rizoma, uma toca…"

Author: Ninguém

Hino ao corpo, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 - 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/chroniques/2020/05/22/hymne-au-corps_1789149

Nós amamos o corpo real, frágil e vulnerável, e não o corpo ideal e tirânico da norma. Nós não sabemos quase nada sobre o corpo vivo. Portanto, devemos amá-lo lá onde ele se exprime: em sua fragilidade trêmula.

Nós amamos o corpo doente. Amamos as cicatrizes e mordidas deixadas na pele pelas feridas. Amamos os corpos velhos, marcados pelo tempo, enrugados pelo sol, cheios de lembranças. Amamos o corpo lento. Amamos a imperfeição e o desequilíbrio, o lábio aberto, o olho que mal enxerga, a mão com dificuldades em agarrar o objeto, o pênis flácido, a perna mais curta que a outra, a coluna vertebral que não pode mais ficar ereta. Nós amamos o corpo real, frágil e vulnerável, e não o corpo ideal e tirânico da norma. Nós amamos o corpo poético, porque a linguagem é só um dos órgãos abstratos do corpo vivo. E amamos o corpo com todas as suas dimensões orgânicas e inorgânicas. A linguagem e a tecnologia são órgãos coletivos e politizados. Como todos os outros órgãos do corpo, elas foram roubadas de nós. Nós não sabemos quase nada sobre o corpo vivo. Portanto, devemos amá-lo lá onde ele se exprime: em sua fragilidade trêmula.

Nós amamos tanto o corpo que nasce quanto o corpo que se aproxima da morte, esse corpo já considerado obsoleto, inútil, improdutivo, um corpo que nos é apresentado em termos de despesa pública, corpo-dívida, um número em uma estatística de infectados e mortos. Amamos esse corpo que, embora à beira da morte, é ainda sensível a um raio de luz sobre a pele, a uma palavra, a um som. O corpo vivo em todas as suas dimensões é nossa única religião. Portanto, quanto mais um corpo devém corpo, quando ele não apresenta nenhuma das virtudes patriarco-coloniais — força, produção, juventude, luxo — mais o amamos. E é também por isso que as instituições de saúde pública, os hospitais e os asilos, as cadeias, as escolas e empresas são nossos primeiros inimigos: porque eles buscam reduzir o corpo vivo à anatomia, ao índice de saúde pública, à rentabilidade dos aposentados, ao número na prevenção de criminalidade, ao nível de educação, ao lucro.

Os governos têm falado da guerra contra o vírus, mas na verdade eles têm feito guerra contra nossos corpos poéticos. Nossa pele foi arrancada, fomos privados de todo contato e cuidado, fomos separados dos amigos e amantes, e os preciosos corpos de nossos queridos covídicos foram enterrados em uma fossa sem nome, privados do rito que liga a memória dos mortos aos corpos dos vivos. O Estado farmacopornográfico tem se comportado como um Creonte neoliberal, nos proibindo de enterrar nossos mortos por eles terem se tornados nocivos a uma comunidade que sonha em ser imunizada. Nós, os filhos bastardos de Antígona, exigimos o cuidado e a celebração dos corpos de nossos entes covídicos, tanto vivos quanto mortos.

Somos a comunidade doente porque não somos a comunidade imunizada. Estamos intoxicados e somos tóxicos. O mundo ao qual pertencemos, esse mundo que só fala de saúde pública, de prevenção e higiene, nada mais fez, do colonialismo a Hiroshima, passando pela Shoah e Chernobil, além de destruir o corpo vivo. A religião fez do corpo a prisão da alma e o inimigo de Deus. Chicoteou-o, amarrou-o, buscou purificá-lo pela tormenta e pelo fogo. Ela quis negá-lo, dominá-lo, sublimá-lo. A ciência transformou o corpo em um objeto anatômico, o dissecou, o dividiu em órgãos e funções, quis conhecê-lo e controlá-lo. O Estado liberal moderno fez do corpo um bem e uma mercadoria, responsabilidade e posse privada do indivíduo. Ele o disciplinou, normalizou, uniformizou. O capitalismo colonial fez do corpo uma força de trabalho, o esmagou, retirou dele não apenas toda sua energia vital, mas também todo seu poder de criação. Ele quis o capturar, comprar, vender, rentabilizar. O patriarcado transformou o corpo em força de reprodução. Ele o estuprou, o engravidou. No neoliberalismo, esse corpo quebrado, destruído, expropriado, capturado… do qual toda força vital foi extraída, ainda é negado. Em seu lugar, um avatar liso é apresentado como uma imagem eletrônica compartilhada. Mas o corpo resiste.

A distância social que nos é imposta não concerne apenas às práticas políticas e poéticas. Não podemos nos manifestar ou reunir para amar, debater ou crer. Mas podemos nos reencontrar para produzir e procriar. A sociedade está morta: não sobra nada além da teleusina e da família, duas esferas em que o corpo vivo ainda é negado e explorado.

Mas nós, contra todas as leis, amamos o corpo aidético, canceroso, obeso, tuberculoso, estéril, manco, leproso, ansioso, depressivo, neurastênico, psicótico, o corpo corroído pela cirrose, o corpo abalado pelo ataque cardíaco, o corpo que aguarda um transplante não importa de que órgão, vivo ou imaginário. Nós amamos o corpo covídico. Nós queremos, como o fazem todos os dias enfermeiros e cuidadores, acompanhá-lo. Nós somos anti-higiênicos, alegremente virais e contagiosamente vivos.

Tudo deve mudar, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/chroniques/2020/06/19/tout-doit-changer_1791833

Tenho pena dos que acham que nada pode mudar. Eles dizem que as coisas continuarão sendo como antes, e quando falam de antes, este tempo aparentemente passado soa como uma profecia. Mas o que eles querem dizer com “antes”? Antes de quem ou antes do quê? Antes da explosão do Covid-19? Antes das sociedades opulentas do Norte capitalista deixarem seus avós morrerem em asilos e mandarem populações racializadas pra fazer o trabalho de cuidado e produção no auge da pandemia? Ou antes de mais de 60 000 pessoas se manifestarem na França contra o racismo institucional e as violências policiais? Ou antes do coração de Adama Traoré parar sob o peso de três policiais que o imobilizaram brutalmente? Ou antes de George Floyd ter sido sufocado pela polícia de Mineápolis? Antes de Rayshard Brooks, outro jovem afro-americano, ter sido morto pela polícia enquanto esperava na fila de um fastfood em seu carro? Antes de Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi lançarem o coletivo de desobediência civil Black Lives Matter para lutar contra as violências policiais? Ou eles poderiam estar falando de antes de Lamia Beard, Ty Underwood, Yazmin Vash Payne e Taja Gabrielle de Jesus, quatro mulheres trans racializadas, serem mortas nos Estados Unidos? Ou talvez eles vão muito mais pra trás e pensem em antes da revolução dos escravos no Haiti? Ou antes de Toussaint Louverture morrer de frio e fome na prisão no forte de Joux? Antes de Susie King Taylor abrir a primeira escola nos Estados Unidos para ensinar os escravos fugidos a ler? Ou antes de Aïssa Maïga, Adèle Haenel e Céline Sciamma se rebelarem contra o funcionamento patriarco-colonial da indústria cinematográfica francesa? Ou antes dos milhares de tweets de mulheres de todos os continentes denunciarem os estupros e as violências sexuais? Ou antes da cantora lésbica egípcia Sara Hegazy se suicidar em seu exílio canadense? Ou talvez eles pensem em antes das mulheres brancas conseguirem o direito ao voto nas sociedades ditas democráticas? Ou mesmo antes de Anna Göldlin, a última “feiticeira” da Europa, ser condenada à morte em 1782 para que seu empregador pudesse esconder o fato de que ele havia a forçado a manter relações sexuais? Ou antes da revogação do direito dos pais de família de dispor da vida de suas esposas e filhos?

Tenho pena dos que acham que nada podem mudar. Eles dizem que as coisas não podem ficar piores que antes. Antes de quem, antes do quê? Antes da Frontex se instalar nas margens do Mediterrâneo e centenas de milhares de migrantes se afogarem? Antes da crise do subprime em 2008? Ou antes da onda de privatizações neoliberais e demissões abusivas? Ou antes das revoltas suburbanas de 2005? Ou antes dos militantes do Black Lives Matter derrubarem a estátua de Edward Colston em Bristol? Ou antes de 50 000 homens, mulheres e outros africanos serem trazidos para a costa inglesa para serem comprados e vendidos como escravos? Ou antes ainda da Inglaterra se tornar um império próspero graças à expropriação colonial? Ou antes do ministro francês Colbert legalizar no Code noir [Código negro] “a venda de negros como bens móveis”? Ou antes da invenção da noção de raça como uma ficção da ciência colonial que permitiu legitimar a escravidão e a economia de plantação? Ou antes da invenção das noções de heterossexualidade e homossexualidade enquanto normalidade e patologia? Ou antes da despatologização da homossexualidade em 1975? Ou antes da politização das pessoas trans? Ou antes dos judeus serem presos nos guetos e da organização de forças políticas e militares para exterminá-los? Ou antes da derrota de Hitler e do desmantelamento dos campos de concentração? Ou antes do lançamento das bombas de Hiroshima e Nagasaki? Ou antes da conferência de Bandung e da entrada na geopolítica dos primeiros países descolonizados? Ou antes de Frantz Fanon renunciar a sua identidade francesa e se tornar argelino? Ou antes da guerra de independência da Algéria? Ou antes de Martin Luther King fazer a América sonhar? Ou antes mesmo de seu assassinato? Ou antes do assassinato de Malcom X? Ou antes de Angela Davis ser condenada à morte? Ou antes dela ser libertada? Ou antes dela ocupar a cadeira de história da consciência na universidade de Santa Cruz na Califórnia? Ou antes de Obama ser eleito presidente dos Estados Unidos? Ou eles falam de antes da Frente Nacional, hoje chamada Reagrupamento Nacional, obter 21,3% dos votos no primeiro turno da eleição presidencial de 2017? De qual antes eles falam? Antes da invenção do dinheiro? Ou antes da hominização? Ou antes do big bang?

Para Adama Traoré, George Floyd, Rayshard Brooks, Lamia Beard, Ty Underwood, Yazmin Vash Payne e Taja Gabrielle de Jesus… não havia um antes que já não fosse tarde demais, e agora não há mais depois. O tempo não é o mesmo para todos. Para alguns, para os corpos violentamente racializados e sexualizados, os corpos negros, migrantes, os corpos das mulheres, dos homossexuais, dos transsexuais, para os velhos, os trabalhadores pobres, os doentes, os deficientes… cada minuto é uma luta, cada memória é uma marca que tenta desesperadamente escapar do apagamento. O privilégio do poder patriarco-colonial é também o direito ao tempo e à história.

Nada voltará a ser como antes, porque nós fomos aos milhares às ruas e fizemos o que ninguém esperava de nós: olhamos no rosto do poder que nos objetifica e dissemos “nunca mais”. Nada voltará a ser como antes porque este é um levante mundial de corpos vivos contra a necropolítica: contra a utilização da violência e da morte como forma de governo das populações subalternas. A história de antes foi parada por um instante. Isso é uma revolução: uma agitação do tempo que detém a ensurdecedora repetição da opressão para que um novo agora possa surgir. O tempo da revolução começou. Tudo deve mudar. Você deve mudar. O tempo daqueles que antes não tinham direito à história começa.

Por um monumento à necropolítica, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/07/03/pour-un-monument-a-la-necropolitique_1793298

Quando estátuas públicas são derrubadas é como se uma mão coletiva entrasse no relógio da história e movesse rapidamente seus ponteiros. E eles agora estão dançando como maracas. Se as elites estão inquietas é porque, como corpos monumentalizados, as estátuas que nos rodeiam incorporam uma espécie de biopolítica esculpida: é preciso reconhecer a força performativa do ato de modelar um corpo (e não outro [qualquer]), de o representar como vitorioso ou vencido, armado ou desarmado, a cavalo ou a pé, vestido ou nu, como um simples busto ou de corpo inteiro, e de inscrevê-lo no espaço físico da cidade através dos materiais como pedra ou metal que desafiam a erosão e a mudança. As estátuas são ex-votos coletivos em uma escala superdimensionada, próteses da memória histórica que lembram as vidas “que importam”, que fixam no espaço os corpos que “merecem se tornar estátuas”.

Em nossas cidades modernas, de herança patriarcal e colonial, as estátuas funcionam como signos compartilhados de uma estética da dominação que gera identificação ou distância, coesão social ou exclusão. As esculturas públicas não representam o povo, elas o constroem: designam um corpo nacional puro e determinam um ideal de cidadania colonial e sexual. Habitamos coletivamente uma paisagem icônica saturada de signos de poder, que apoiados em narrativas históricas e épicas acabam sendo estetizadas e naturalizadas até deixarmos de perceber sua violência cognitiva. A exaltação pública dos valores de supremacia branca, masculina e heterossexual por estátuas eclesiásticas, militares, governamentais… faz da cidade moderna um parque de diversões patriarco-colonial, onde as estátuas funcionam como avatares que servem para construir narrativas de dominação, pertença e reconhecimento, ou de submissão, exclusão e invisibilidade. É por isso que todas as estátuas devem cair.

Além disso, todas as estátuas públicas que caem são mentirosas. Nenhuma incarna o corpo físico que pretende representar, mas sim o corpo político normativo, os valores de virilidade, pureza racial, riqueza, poder e vitória do discurso patriarco-colonial que as encomendou e instalou. Nenhuma estátua representa Colbert se masturbando ao olhar um mapa da África, ou o frei Junípero Serra fodendo um índio, ou Edward Colston enquanto um escravo negro lhe chupa. Todas as estátuas são mentirosas. Todas as estátuas são destinadas a cair um dia. Existe um primado secreto mas determinante do gesto iconoclasta em qualquer decreto governamental sobre escultura. Como nos lembra Winfried Georg Sebald, os monumentos que inscrevem o poder de um sobre o outro no espaço da cidade contêm em seu próprio estilo violento e grandiloquente o germe paradoxal de sua própria destruição. E quanto maiores são as estátuas, melhores serão seus escombros.

Existe uma analogia tectônica entre a demolição de estátuas que até o presente serviram de emblemas culturais de uma civilização e o necessário desmantelamento da infraestrutura patriarcal e colonial da modernidade capitalista. Precisamos de uma iconoclastia lenta e profunda. É preciso desmantelar todas as estátuas monumentais que comemoram a modernidade patriarcal e colonial, absolutamente todas, e junto com elas criar — para a tranquilidade dos memorialistas iconófilos — o Monumento à Necropolítica do Mundo Moderno. E que os pedestais e museus fiquem vazios. É preciso dar lugar à utopia. É preciso abrir espaço para os corpos vivos. Menos metal e mais vozes, menos pedra e mais carne.

Que todas, absolutamente todas as estátuas desmontadas sejam colocadas no mesmo lugar, no chão, de pé, face a face, lado a lado, mas a um metro e meio de distância uma da outra, como se devessem manter entre si uma distância semelhante àquela que protege da contaminação viral — a violência, o terror, o ódio contaminam mais que um vírus — para que os visitantes desse mausoléu silencioso do terror moderno possa passar entre elas, tocá-las, conhecê-las, olhá-las nos olhos, e talvez um dia perdoá-las.

Poderíamos iniciar um debate sobre o melhor lugar para hospedar esse Monumento reciclado e gigantesco da Necropolítica Colonial Moderna. Ele poderia ser instalado na praça principal de Burgos, na Espanha, a dois passos da Casa del Cordón, onde Cristóvão Colombo assinou o acordo com os reis católicos para empreender a viagem transatlântica; ou entre as ramblas e o Paseo Marítimo em Barcelona; ele poderia ser colocado no porto de Liverpool, ou na praça da Concórdia em Paris, ou em frente ao Bourse Maritime em Bordeaux, ou nos jardins do palácio real de Bruxelas… há muitos lugares, mas nenhum será grande o suficiente para abrigar todas essas estátuas. É por isso que o melhor lugar para colocar as estátuas me parece ser uma linha que corresponda às fronteiras da Europa e dos Estados Unidos, seguindo exatamente as linhas de demarcação definidas por seus respectivos governos. Esse muro perfurado de infâmia substituiria as barreiras e as valas, os muros e as cercas, a polícia das fronteiras e a alfândega. Todas essas estátuas, colocadas a um metro e meio de distância umas das outras, e às vezes até mais, permaneceriam ali, indicando que o território agora definido como Europa ou Estados Unidos é o resultado de suas práticas e discursos. E elas ficariam lá, como uma fronteira histórica, nos lembrando de onde viemos, até que um dia as estátuas caiam, empurradas pelo vento, sacudidas pelos transeuntes ou deterioradas pela chuva.

Não sofremos de um esquecimento da história normativa, mas de um apagamento sistemática da história da opressão e da resistência. Façamos descer as estátuas de seus pedestais e subamos neles para falar e contar nossa própria história de sobrevivência e libertação.

Voltem, corram!, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/09/04/rentrez-courez_1798632

Voltem, voltem, apressem-se, voltem, mas para onde? Voltem, retornem aos seus postos, para que ninguém possa tirar as cadeiras que deixaram vazias em suas instituições, em seus escritórios, em suas empresas, em suas start-ups, em suas escolas. E se algum gênio maligno deixasse sua cadeira intocada e tirasse as instituições, os escritórios, as empresas, as start-ups, as escolas? Para onde voltariam? Pouco importa, a questão é voltar atrás. Encontrar sua cadeira, sentar-se nela, assumir seu lugar. Cadeiras e mais cadeiras alinhadas e cheias, a um metro e meio de distância, flutuando no meio do nada.

Voltem, voltem, apressem-se. Deixem os lojistas colocarem os novos produtos de outono nas prateleiras, deixem que eles se apressem no caso caso da Covid voltar para levar suas vendas com ela. A falta é arranjada, organizada, na produção social. A produção nunca é organizada de acordo com uma falta real, é a falta que vem se propagar por toda parte, de acordo com a organização do trabalho. Por isso voltem imediatamente ao trabalho, voltem para pegar sua carta de demissão, sua parte da falta. Corram para seu trabalho antes que ele desapareça, apressem-se para pedir um empréstimo e aumentem sua dívida.

Voltem, voltem, voltem rapidamente de suas férias a menos de 100 quilômetros de casa, corram para seus postos com sua máscara pendurada no pulso como uma pulseira dispersora de vírus. Vocês gostariam de ter ido para uma ilha deserta no meio do mar, muito longe, um lugar onde não se pode ver Lampedusa ou Calais, mas tiveram de ficar na Normandia. E agora a Normandia parece mais distante de Paris do que nunca. Voltem para suas cidades, voltem para a poluição e o barulho delas, antes que seus pulmões e ouvidos se acostumem com a sinfonia do campo. Tentem voltar para os labirintos do metrô, suportar as horas intermináveis de reuniões. O que é “presencial” agora se tornou mais virtual que o virtual. Voltem para se submeter às perguntas dos funcionários públicos, tomem novamente as filas da agência pública de empregos, voltem rapidamente para suas tele-vidas. Deixem o nariz bem aberto para que uma figura humana escondida atrás de um macacão higiênico possa enfiar um cotonete e esfregá-lo na beirada seu cérebro para que, com um pouco de sorte, ela descubra que estão vivos e com resultado negativo. Deixem seus filhos, pequenos corpos quase imunes, voltarem às escolas, lugar em que nada que aprenderem vai salvá-los do ecocídio de seus anciãos.

Voltem, voltem, voltem rápido, voltem para suas vidas antigas. Voltem para a violência policial bem medida: vocês matam na fronteira, afundam as jangadas no mar e joga fora aqueles que chegam já sem sapatos; vocês batem, enfiam os joelhos no peito e trancam trabalhadores negros e árabes nos matadouros — no sentido literal e figurado; enquanto no centro da cidade vocês protegem o povo branco do vírus. Para vocês, Segurança Social, para eles, a socialização dos riscos. Para vocês, a recuperação econômica e a democracia neoliberal, para eles, a recuperação da segurança. Voltem para sua tradição fascista, se é que vocês, franceses, também têm uma. Que os führers voltem. Que voltem também de suas férias em suas ilhas desertas, longe de Lesbos e Lampedusa, Trump, Bolsonaro, Erdogan, Duda, Orbán, Putin e Lukashenko, enquanto o Novitchok leva a alma de Alexei Navalny e a prisão acaba com o corpo de Ebru Timtik. E já que estamos nisso, deixem Sarkozy voltar também, deixem Cecília voltar também, desculpe, eu quis dizer Carla, deixem seu violão e sua voz doce e cruel voltarem também.

Voltem, voltem apenas para perceber que aquilo a que vocês voltam com tanto esforço não tem mais sentido. Vocês não podem voltar a uma vida normal porque o que costumavam chamar de vida normal não existe durante uma mudança de paradigma, porque, mesmo que as coisas ainda pareçam as mesmas, elas não são. Mesmo as palavras que parecem ser pronunciadas da mesma forma mudaram seu significado. O problema é que ninguém sabe ainda que novo significado será este. Será que um algoritmo decidirá isso? Será anunciado no Instagram? Ou será decretado? Voltem para casa com suas malas carregadas de palavras e coisas, só para descobrir depois que não têm as definições corretas.

Não, a pressa não vale a pena. Não se pode voltar atrás. Porque isso seria como tentar retornar para um ponte epistemológica que acabou de ruir. O mundo que estava atrás de nós, aquele emaranhado de signos integrados que você acredita que são reais, desapareceu. As linhas que separam os signos sensíveis e inteligíveis se moveram. Não se pode voltar atrás. A deriva do migrante para o nada é um modelo político melhor do que o do cidadão europeu ou norte-americano normativo que simplesmente quer ir para casa. O terror e o desejo que animam o exílio estão mais próximos da mutação necessária para enfrentar o túnel no qual nos afundamos coletivamente.

Estamos praticando uma nova migração para lugar algum, onde não há mais um bom pastor ou um Estado-nação para nos receber. É hora de ir ainda mais longe, não voltar, mas subir a montanha, deixar os deuses do capitalismo nas cidades, ir sem pai nem mãe, sem natureza, apenas com os vivos e os mortos. A instituição ou o Estado-nação, a indústria petroquímica e farmacêutica, os gigantes da informática, podem nos dar algo melhor? Sem chance. Não voltem.

Os Psiconazis, de Mario Mieli (1980)

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Tradução da terceira seção do segundo capítulo do livro Homosexuality and liberation: elements of a gay critique. Londres: Gay Men’s Press, 1980. p. 60–72

 

[60] A visão de Freud de que a homossexualidade, mesmo sendo uma ‘perversão’, não era [61] uma síndrome patológica, está longe de ser um consenso entre todos os psicanalistas e psiquiatras. Isso é visível na repressão do entendimento que a escola psicanalítica efetuou contra os aspectos mais ameaçadores do pensamento freudiano — até Wilhelm Reich se enrolou na repressão que denunciava, particularmente na questão da homossexualidade.

Sandor Ferenczi, por exemplo, manteve uma posição explicitamente contrária à de Freud com relação à homossexualidade. Em 1909 ele definiu a homossexualidade como uma psiconeurose e afirmou não acreditar em qualquer homossexualidade universal e congênita. Em outubro de 1911, no terceiro congresso da Associação Internacional de Psicanálise, sediado em Weimar, Ferenczi propôs uma distinção entre sujeito- e objeto-homoerotismo:

Um homem que, ao copular com outro homem, se sente uma mulher, é invertido em relação a seu próprio ego (homoerotismo pela inversão-sujeito, ou, mais sucintamente, ‘sujeito-homoerotismo’); ele se sente uma mulher, não só no coito genital, mas em todos os aspectos da vida.

Esse último tipo de homossexualidade, de acordo com Ferenczi, constitui “um verdadeiro ‘estado sexual intermediário’ (no sentido que emprega Magnus Hirschfeld e seus seguidores), logo uma pura anomalia do desenvolvimento”. (Atenção para a simplicidade de sua definição.)

À figura do homossexual passivo ‘sofredor’ desse ‘sujeito-homoerotismo’, Ferenczi contrapõe o ‘verdadeiro homossexual ativo’:

O verdadeiro ‘homossexual ativo’ … se sente um homem em todos os sentidos, é sempre muito enérgico, e não há nada afeminado a ser descoberto em sua organização mental ou corporal. Apenas o objeto de sua inclinação é trocado, então pode-se chamá-lo de homoerótico pela mudança do objeto-amor, ou, mais sucintamente, um objeto-homoerótico.

É esse ‘homoerotismo objeto’, de acordo com Ferenczi, que constitui a neurose — uma neurose obsessiva, para ser mais preciso. Ao descrever o ‘objeto-homoerotismo’ como uma síndrome [62] patológica, Ferenczi admite que está “em oposição a Freud, que, em sua ‘Sexualtheorie’ descreve a homossexualidade como uma perversão’.

Está claro que, enquanto o rótulo de ‘perversão’ que Freud aplicou à homossexualidade deixa ver a base reacionária de sua posição sobre pessoas gays (mesmo que seja ‘inapropriado … usar a palavra perversão em tom repreensivo’), outros psicanalistas, incluindo alguns pessoalmente próximos de Freud como Ferenczi, foram mais abertamente reacionários ao definirem a homossexualidade como patológica em si mesma.

Por outro lado, o argumento de Ferenczi é cheio de contradições. Em alguns textos em que lida com a questão da homossexualidade indiretamente, ele sempre aceita implicitamente a existência de uma homossexualidade congênita, p. ex. a presença universal do desejo gay. Mas se (como esses textos sugerem) qualquer ser humano pode ser visto também como homossexual, seríamos todos afetados pela neurose obsessiva ou por uma ‘pura anomalia do desenvolvimento’?

Não, Ferenczi diria, porque é esta a razão pela qual se diferencia pessoas ‘neuróticas’ das ‘saudáveis’. Claramente, em seu ponto de vista, a homossexualidade é uma psiconeurose ou anomalia só se manifesta, isto é, quanto vence as resistências e escapa da repressão.

Acredito que falo por muitos homossexuais que, pelo contrário (e aqui nos aproximamos mais do raciocínio de Freud), a neurose geral que afeta a todos em nossa sociedade é em grande parte uma função do social, a extinção do desejo gay, sua repressão forçada e sua conversão em sintomas patológicos.

Ferenczi, ao que parece, não quis chegar a essa conclusão. Sua condição privilegiada de homem heterossexual conforme a Norma impediu que ele descobrisse o papel central da repressão da homossexualidade na etiologia da neurose que atormenta nossa sociedade e civilização. Para descobrir isso ele precisaria ter reconhecido primeiramente sua própria ‘neurose obsessiva’ e o caráter anômalo de seu próprio desenvolvimento como oposto a uma ‘evolução’ pansexual livre. Assim, ele precisaria considerar como é possível estar verdadeiramente bem e ‘saudável’ a não ser que se liberte o próprio desejo por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade manifesta em si mesma não garante felicidade, mas não [63] existe libertação verdadeira sem a libertação do desejo gay.

Mencionei que a maioria dos estudos psiquiátricos sobre a homossexualidade (masculina) sempre tende a separar em duas categorias fechadas os homossexuais ‘masculinos’ (o ‘objeto homoerotismo’ de Ferenczi) e os ‘femininos’ (‘sujeito homoerotismo’) de acordo com o modelo tradicional de papeis sexuais heterossexual e a distinção rígida entre os sexos. Os psiquiatras e psicanalistas que se arriscam no estudo da homossexualidade se veem incapazes de não aplicar a ela categorias de interpretação completamente heterossexuais. Quanto aos antipsiquiatras, eles entendem mais de Lacan que de homossexualidade. (‘Quer um pouco de Lacan?’, ‘O que é isso, um refrigerante novo?’)

Nas interpretações psicanalíticas, então, nós homossexuais encontramos apenas uma figura distorcida de nós mesmos; as visões dos psicanalistas quase sempre se equiparam às ideias estereotipadas e falaciosas que os heterossexuais ignorantes têm de nós. (E quando o assunto é homossexualidade todos os heterossexuais são mais ou menos ignorantes.) Longe de começar pela aparência de nossa vida ‘externa’, nossa exclusão da sociedade, com vistas de atingir, pela análise crítica, a realidade de nossa condição como homossexuais, a psicanálise, carregada de preconceitos, aplica categorias de interpretação tiradas da típica visão heterossexual da homossexualidade. Em outras palavras, ela procede de aparência em aparência, semeando ilusões, erigindo obstáculos para a crítica e reforçando a ideologia predominante.

É corriqueiro se confrontar com posições essencialmente iguais às de Ferenczi na história da psiquiatria e psicanálise. É muito comum que médicos classifiquem a grande maioria — se não todos — dos ‘casos’ de homossexualidade manifesta como neurótica e psicopatológica. Na sua visão o homoerotismo é neurótico como uma ‘fixação infantil da libido, em particular uma fixação no estágio anal-sádico’; ‘por sua falha ao dissolver o complexo de Édipo e seu narcisismo persistente’; ‘por sua repressão da heterossexualidade’; ou, finalmente, ‘por seu desenvolvimento sexual problemático na primeira infância originado de uma frustração profunda na aproximação com o sexo oposto’ (Wilhelm Reich). Essas são as respostas mais comuns.

[64]E também há aqueles que veem a causa da homossexualidade no ‘pânico’ vivido em relação ao mistério do outro sexo. ‘Consideramos a homossexualidade uma adaptação biossocial e psicossexual patológica consequente ao medo generalizado da manifestação de impulsos heterossexuais’ (Irving Bieber).

Se vê imediatamente como hipóteses como esta são acríticas e ilusórias pelo modo com que tentam nos entender a partir do preconceito de que a heterossexualidade pode ser tomada como ‘normal’ em um sentido absoluto. Porém, se seguirmos as teorias psicanalíticas sobre a ‘patogênese’ da homossexualidade, não podemos evitar considerar também a heterossexualidade, por analogia, como neurose — por sua repressão da homossexualidade, por exemplo, ou pelo pânico que sente de relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. Poderíamos dizer, parafraseando Bieber: ‘Consideramos a heterossexualidade uma adaptação biossocial e psicossexual patológica consequente ao medo generalizado da manifestação de impulsos homossexuais’.

Não é legal brincar de pique-esconde com psicanalistas — ou, melhor, psiconazis — e nem é útil confrontá-los em seu próprio terreno. Esses médicos estão imersos em idiotices advindas do tabu anti-homossexual em seu inconsciente, e com certeza não é preciso levar suas ‘opiniões’ a sério. E ainda assim muitas pessoas ainda hoje acreditam que estão certas, e encontram nos preconceitos dos psicanalistas um apoio para os seus próprios, de modo que é impossível evitar lidar com eles. Devemos aqui ter em mente o que Domenico Tallone escreveu sobre a equivalência psiquiátrica entre a homossexualidade e a doença: ‘Eu preferiria não ter que discutir sobre um tema tão estúpido se essa idiotice não fosse ainda tão bem-sucedida em substituir o bom senso por resultados vazios amparados por títulos acadêmicos’.

Está claro que, a não ser que simplesmente assumamos o preconceito atual que considera a heterossexualidade ipso facto ‘normal’ e ‘natural’ e a homossexualidade ‘anormal’ e ‘não natural’, falar que a maioria dos ‘casos’ de homossexualidade manifesta é psicopatológica e que o homoerotismo é uma neurose nos força a admitir que a heterossexualidade é também psicopática e uma doença. Então podemos nos perguntar para qual objetivo, e, especialmente, [65] no interesse de quem se diagnostica homossexuais como ‘neuróticos’, e aí poderemos ver o quão absurdo é declarar poder ‘curar’ a homossexualidade como ‘doença’ a partir da perspectiva heterossexual dos psiconazis, que se tomam por saudáveis, mas na verdade são neuróticos.

Mas por que o homoerotismo é considerado ‘anormal’ e ‘não natural’? Se o animal no homem é considerado parte essencial de sua ‘natureza’, vemos imediatamente como a homossexualidade é comum entre os animais, e em certas espécies inclusive é mais disseminada que a heterossexualidade, tanto a masculina quanto a feminina. A homossexualidade é extremamente comum entre primatas, e muitos mamíferos subprimatas também são homossexuais, como leões, golfinhos, cachorros (quem nunca viu dois cachorros machos ou fêmeas trepando?), gatos, cavalos, ovelhas, bovinos, porcos, coelhos, porquinhos-da-índia, ratos, etc. Também há pássaros que comumente são gays (patos, por exemplo).

Mas ainda assim esse tipo de evidência não serve de nada para abrir os olhos dos intransigentes. Esses heterossexuais vendados usam os conceitos de ‘natural’ e ‘não natural’ de modo conveniente. Podemos citar o que Eurialo De Michelis tem a dizer, por exemplo, em seu texto chamado ‘A homossexualidade Vista por um Moralista’ [Homosexuality Seen by a Moralist]: ‘Que força existe no argumento irresistível de que o amor ‘não natural’ também é visto no mundo animal? Pode ser algo inocente nas feras mas não no homem, já que a vida humana é feita do que distingue o mundo humano do animal’.

Deixemos os animais em paz, já que vimos que eles também têm amores ‘não naturais’ e que a vida humana envolve algo mais. De setenta e seis formas diferentes de sociedade estudadas pelos antropólogos Cellan Ford e Frank Beach, a homossexualidade era censurada e mais ou menos reprimida em apenas vinte e sete (pouco mais que um terço). O tabu anti-homossexual que caracteriza nossa civilização Ocidental não é, então, um elemento estrutural da ‘natureza humana’, mas tem uma certa origem misteriosa. Sodoma e Gomorra não foram destruídas por nada.

Enfim, já vimos como a própria psicanálise, nas palavras de Freud, declarou a presença universal do desejo homoerótico nos seres humanos. Disso eu deduziria que a heterossexualidade, enquanto baseia sua suposta primazia na [66] na falsa afirmação de que a homossexualidade é ‘não natural’, ‘anormal’ ou ‘patológica’, demonstra que é, em si mesma, patológica. Mais precisamente, se o amor por um ser humano do sexo ‘oposto’ não é de fato absolutamente patológico, então a heterossexualidade como se apresenta hoje, ou seja, como a Norma, é patológica, já que funda sua primazia como um déspota pela opressão de outras tendências eróticas. Essa tirania heterossexual é um dos fatores determinantes da neurose moderna, e (dialeticamente) é um dos sintomas mais graves dessa neurose.

Muitos psiquiatras e psicanalistas, em seu papel de policiais iludidos da autoridade capitalista heterossexual, distinguem vários tipos de homossexualidade de um ponto de vista médico e psicológico: de acordo com eles, devemos falar não de homossexualidade, mas de homossexualidades. No mesmo espírito devemos falar de heterossexualidades em vez de simplesmente heterossexualidade.

Há médicos que diferenciam vários tipos de homossexualidade de acordo com a idade do ‘objeto’ do amor: pedofilia ou pederastia se for criança ou adolescente, gerontofilia se a pessoa for velha. Mas e se o ‘objeto’ sexual estiver em algum lugar entre os dois?

Ao menos com relação à pedofilia, a etimologia grega não faz distinção de sexo: paidos pode ser usado tanto para menino quanto para menina. Deveríamos distinguir a heterossexualidade pedófila de outras formas de heterossexualidade? Na verdade, quando as pessoas supostamente ‘normais’ menosprezam a ‘perversão’ da pedofilia nas relações entre pessoas de sexos diferentes, elas certamente não se referem a ela como heterossexualidade (uma vez que essa é para elas sinônimo de ‘normalidade’) nem como pedofilia (já que sua ignorância os leva a considerar esse termo como um simples sinônimo de homossexualidade masculina). Eles preferem falar só em ‘perversão’, ou pior, em ‘crime hediondo’. Para as pessoas ‘normais’ um homem que faz sexo como uma menina não é um heterossexual, é um monstro. E ainda assim Lolita vende muito. Está nas estantes das melhores famílias, em suas fantasias e segredos.

E ainda há médicos que cometem o disparate de diferenciar homossexualidades de acordo com uma suposta modalidade de ‘técnica’ [67] sexual (anal, oral, etc.). Mas de novo, qual é o sentido dessa distinção se um indivíduo pode ter várias ‘homossexualidades’? Ele faz sexo anal, chupa rola, beija, abraça e se masturba em intervalos ou ao mesmo tempo, ele é ativo ou passivo com seus parceiros, é ativo e passivo com dois parceiros ao mesmo tempo? Mas do ponto de vista da ‘técnica’, uma mesma pessoa pode também ter várias heterossexualidades: o sexo anal, por exemplo (mesmo que o Último Tango tenha sido banido na Itália), além do tradicional genital/frontal heterossexual. Enfim, o que esses médicos perturbadores falariam dos que gostam ao mesmo tempo de vários modos de heterossexualidade e homossexualidade? De uma pessoa, por exemplo, que com o punho de sua irmã no cu, fode o namorado da irmã enquanto masturba a irmãzinha do namorado e chupa seu padrasto. (Padrasto de quem?)

Com todas suas distinções, tão inúteis quanto pomposas, nossos médicos só se inspiram no tio (pra ficar em família) do poema de Catulo:

Gelius,
[ ouvindo seu tio anatematizar a mera menção
e também prática do amor e das possibilidades do amor
determinado a tirar vantagem da situação
prontamente atacando sua tia. O tio
foi discretamente incapaz de mesmo mencionar o acontecimento.
Gelius pôde fazer o que quis.
[ Se sodomizasse o velho
O tio nem pronunciaria uma palavra.

Mais ridícula ainda é a distinção feita por certos psiconazis das características da conexão homossexual: ‘relações em um nível puramente instintivo, ou de um amor erótico complexo’ (Tullio Bazzi). É exatamente este tipo de distinção que permite à Igreja considerar relações homossexuais como mais ou menos pecaminosas de acordo com seu caráter. (Mais ou menos, já que são ainda assim pecados no que tange à moralidade católica.)

Por fim, os médicos geralmente distinguem as formas da ‘verdadeira’ homossexualidade [68] de outras formas ‘espúrias’ e ‘pseudo’ homossexualidade (Bergler, Schneider, Servadio, entre outros defensores dessa visão).

  1. A ‘verdadeira homossexualidade’ só existe quando ‘um homem de impulsos femininos se atrai por um homem com impulsos e um corpo masculinos’. Só nesse caso, de acordo com os médicos, existe uma ‘inversão psicossexual do sujeito’.
  2. Esse não é, entretanto, um caso de ‘inversão sexual verdadeira’, quando um homem com ‘impulsos masculinos’ se atrai por um homem com corpo ‘feminizado’ mas impulsos ‘masculinos’. Nesse caso diriam, o ‘objeto’ é incapaz de amar o ‘sujeito’. Por que não? O componente homossexual anteriormente latente não poderia emergir independente de seus ‘impulsos masculinos’ (que os médicos obviamente equiparam à heterossexualidade)? Nós bichas sabemos perfeitamente que não existe um heterossexual incorrigível. Você só precisa pegá-lo na hora certa (também não importa se seu corpo é ‘masculino’ ou ‘feminizado’). ‘Um homem com experiência homossexual com certeza pode encontrar mais parceiros sexuais entre homens que um homem com experiência heterossexual poderia encontrar com mulheres’ (Kinsey). Não há nada mais gay que transar com um cara que tinha a convicção de não sentir nenhuma atração sexual por outros homens, e que aí, graças a seu talento para a sedução, do nada começa a pegar fogo de desejo em seus braços. A distinção médica entre ‘verdadeira’ e ‘pseudo’ homossexualidade é um castelo no ar. A homossexualidade é sempre verdadeira, e ela verdadeiramente existe mesmo que não aparente, p. ex, quando ainda está latente.
  3. De acordo com alguns desses médicos é impossível falar de uma ‘verdadeira’ homossexualidade no caso de um ‘homem com impulsos masculinos’ se sentir atraído por um ‘homem com o corpo feminizado e impulsos femininos’, mesmo que nessa situação (eles devem admitir — bom pra eles!) ‘seja possível a formação de um laço recíproco’. De acordo com os psiconazis, de fato, enquanto os ‘impulsos’ de um homem se mantêm masculinos é impossível falar de uma verdadeira inversão psicossexual do ‘sujeito’, ou ‘verdadeira homossexualidade’. Aqui vemos os efeitos absurdos da noção de ‘inversão psicossexual do sujeito’ como condição sine qua non da ‘verdadeira homossexualidade’ e a dicotomia ilusória de ‘sujeito’ e ‘objeto’ (mesmo se qualquer sujeito seja também um objeto e vice-versa). Nossos psiconazis não se atêm a este terceiro ‘caso’, e o consideram uma expressão [69] ‘espúria’ da homossexualidade, apesar de, com relação aos ‘impulsos’, ele ser simétrico ao primeiro ‘caso’, que na sua visão é a única forma de ‘homossexualidade verdadeira’. Nesse sentido, negando o aspecto de reciprocidade no conceito de homossexualidade ‘verdadeira’, eles negam a possibilidade de uma genuína relação homossexual e reduzem a ‘verdadeira’ homossexualidade a apenas um atributo de um certo tipo de ‘sujeito’.

Resumindo de novo: pra muitos psiconazis a homossexualidade só é verdadeira se for acompanhada do que chamam de ‘inversão psicossexual do sujeito’, já que nesse caso ‘o sujeito possui uma psicossexualidade feminina e é compreensível que se sinta atraído por homens’. Só um ‘uraniano’ ideal (‘a mente de uma mulher no corpo de um homem’ — Ulrichs) seria realmente gay. Todos os outros são pseudo. Por que diabos será que as pessoas geralmente juntam todos os homens que querem transar com outros homens? Talvez então o senso comum saiba mais que os médicos?

Não é difícil ver que esses médicos, com todos seus sofismas e belas definições, apenas reiteram os lugares-comuns que colocam na homossexualidade rótulos ‘interpretativos’, um carimbo heterossexual. De acordo com eles, você precisa ter ‘impulsos’ psicossexuais femininos para desejar um homem. Se não tiver, sua homossexualidade é só uma ‘pseudo-homossexualidade’. É fato, de todo modo, que o tipo de situação homossexual que eles consideram ‘verdadeiro’ de fato se aproxima da heterossexualidade. Eles são completamente incapazes de enxergar a homossexualidade masculina, por exemplo, como uma relação entre homens, e a reduz a essencialmente um tipo de ‘invertido’ com desejos ‘femininos’ direcionados ao homem: o tabu anti-gay os impede de entender que o homoerotismo não é apenas uma paródia da heterossexualidade, mas algo bem diferente, e isso os faz vomitar nuvens de palavras vazias.

Nós, no entanto, consideramos verdadeiramente homossexuais qualquer tipo de desejo, ato ou relação entre pessoas do mesmo sexo. Não é óbvio? Sim, mas os heterossexuais ignorantes parecem não entender.

Incluído nessa definição do que é verdadeiramente homossexual está o contato erótico que uma mulher, que geralmente só tem relações com homens, pode ter com outra mulher (independente dela ver isso assim ou não); de modo parecido [70] se inclui o contato homossexual ocasional de um homem, que geralmente só tem relações com mulheres, com outro homem.

De acordo com Kinsey et al., em vez de usar os termos ‘heterossexual’ ou ‘homossexual’ como ‘substantivos referentes a pessoas, ou mesmo como adjetivos para descrever pessoas, eles seriam melhores usados se descrevessem a natureza explícita das relações sexuais, ou dos estímulos aos quais um indivíduo responde eroticamente’. Eles estão bem certos aqui, mesmo que sua proposta seja abstrata e ignore o presente; porque, dada a oposição histórica entre indivíduos que reconhecem seus desejos homoeróticos e aqueles que os negam desesperadamente, seria impossível hoje evitar diferenciar homossexuais e heterossexuais manifestos. Em outras palavras, seria uma dissimulação terminológica perigosa e ilusória da verdadeira contradição que existe entre a heterossexualidade e a homossexualidade; essa é uma noite em que nem todos os gatos são pardos.

Voltemos, então, às visões dos psicólogos héteros. Muitos dizem que, em certos momentos, devido ao efeito de certos fatores ambientais, o comportamento homossexual se desenvolve como uma satisfação puramente instintiva e paliativa. Às vezes se referem a isso como homossexualidade de ‘emergência’, particularmente visível entre membros de ‘comunidades’ masculinas privadas do contato com mulheres e vice-versa. (Cadeias, campos de concentração, faculdades, conventos, navios, quarteis, etc.) É errado falar, mesmo nesses casos, de homossexualidade ‘falsa’ ou de ‘emergência’. Precisamos reconhecer também aqui as expressões manifestas do desejo homoerótico que, anteriormente latente, agora emerge dadas as condições ambientais, de um modo mais ou menos alienado (particularmente por causa das condições restritivas e inumanas).

Há até médicos que se recusam a considerar homens prostitutos como ‘homossexuais verdadeiros’ e preferem chamá-los de ‘psicopatas amorais’ (Tullio Bazzi). Mas nesse caso, homens que se prostituem para mulheres também podem não ser considerados heterossexuais verdadeiros. Eles deveriam também ser categorizados como ‘psicopatas amorais’?

Em todos os eventos vemos garotos de programa desse tipo como homossexuais, que por causa da opressão do homoerotismo e da pobreza [71] em que vivem, só podem expressar seus impulsos homoeróticos quando o justificam, para si mesmos e para os outros, pela necessidade de ganhar dinheiro (independente disso ser ou não uma desculpa).

Em conclusão, devemos associar a opinião daqueles que consideram a homossexualidade uma ‘psiconeurose’ àquelas pessoas que, ao invés de se orgulharem de sua condição, se envergonham dela, a temem, tentam escapar dela. Mas disso se seguiria que poderíamos também definir como psiconeuróticos aqueles heterossexuais que negam desesperadamente possuir impulsos homossexuais, já que é precisamente essa negação intransigente que revela seu medo de reconhecer a homossexualidade em si mesmos, algo que não podem aceitar; são neuróticos porque são bichas encubadas. Esses homossexuais que têm medo de sê-lo são neuróticos, mas a sociedade heterossexual que rejeita o homoerotismo, considerando-o vergonhoso e indecente, condenando-o à latência ou marginalização, também é. Os homossexuais que prefeririam ser héteros só refletem uma sociedade que reprime o homoerotismo.

Mas quando uma pessoa gay ‘se aceita’, a psicoterapia precisa reconhecer que ‘os resultados são virtualmente nulos naqueles raros sujeitos que estão preparados para tal cura’. Algumas pessoas podem se perguntar como é possível para um homossexual aceitar sua condição e ao mesmo tempo fazer uma terapia pra mudá-la. Evidentemente é suficiente para os médicos que uma pessoa gay não surte por sua homossexualidade para que possa dizer que ele ‘se aceita’ e proceder, frequentemente, à tentativa de ‘curá-lo’. Mas uma pessoa gay que realmente se aceita, que se ama como é e pelo que faz, e que ama outras pessoas gays, nunca consentiria a qualquer ‘cura’ que buscasse transformá-lo em heterossexual (nem mesmo se Delfine Serigue fosse a enfermeira).

De todo modo:

Mesmo os psicanalistas ortodoxos, geralmente tão otimistas com seus próprios métodos, são relativamente céticos sobre isso. Stekel dizia ‘nunca ter visto um homossexual curado pela psicanálise’, e Nacht (1950) admitiu que essa condição é ‘inacessível para qualquer tipo de psicoterapia’.

É óbvio que você não se pode ser curado de uma doença que não tem.

Homonacionalismo e biopolítica, de Jasbir K. Puar (2007)

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Tradução da introdução do livro Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times, de Jasbir K. Puar (2007)

 

Tanto Krauthammer quanto sua crítica, a acadêmica de estudos americanos Amy Kaplan, enfatizam a confluência entre a sexualidade e a política americanas. A metáfora da saída do armário, que Kaplan diz ser invocada constantemente pelos neoconservadores norte-americanos para construir — com mais e mais facilidade — a ideia dos Estados Unidos como um império, chama a atenção não apenas por sua disseminação apropriativa, mas pelo que essa apropriação indica. Por um lado, essa convergência marca um momento cultural de inclusão nacional da homossexualidade, aludindo a uma possibilidade paralela de libertação nacional e queer. Essa sanção da língua franca da libertação gay indica que a saída do império Americano de seus armários — um império já conhecido, mas velado — deve e irá resultar em orgulho, em um império Americano orgulhoso. Nesse texto incisivo, Kaplan, de modo perspicaz, chama a atenção para as omissões do pronunciamento de Krauthammer, mas infelizmente também faz as suas próprias. Do ponto de vista demográfico, pode-se deduzir que as pessoas mais prováveis de serem forçadas no armário pela política “não pergunte, não conte” [Don’t Ask, Don’t Tell], dado que é uma maioria desproporcional nos alistamentos das forças armadas dos EUA, são homens e mulheres de cor. Assim, qualquer insinuação de afinidade com sujeitos sexuais não normativos que a nação fizer será atentamente delimitada por um “poder militar que exige que seus soldados fiquem no armário”. Essa ressalva é implicitamente racializada ao demarcar os participantes menos bem-vindos nessa revelação nacional do orgulho de ser uma pessoa queer de cor. Além disso, nessa recuperação do excepcionalismo, Krauthammer e Kaplan fazem uma afirmação perturbadora sobre os investimentos teleológicos nas narrativas de “ficar” ou “sair do armário” que tem sido criticadas há tempos por teóricos pós-estruturalistas por causa dos sujeitos liberais (brancos) gays, lésbicas e queer que elas inscrevem e validam.

A inclusão e o reconhecimento nacional, aqui considerado um jargão da anexação homossexual, depende da segregação e desqualificação de outros [others] raciais e sexuais no imaginário nacional. Existe nessa dinâmica um tipo de excepcionalismo sexual — a emergência da homossexualidade nacional, que chamo de “homonacionalismo” — que corresponde à saída do armário do excepcionalismo do império Americano. Mais adiante, esse tipo de homossexualidade opera como um modelo regulatório não apenas da normatividade gay, queer ou da homossexualidade, mas também de normas raciais e nacionais que reforçam esses sujeitos sexuais. Há um compromisso com a ascendência global dominante da branquitude [whiteness] que está implicado na propagação dos Estados Unidos como um império e as alianças entre essa propagação e esse tipo de homossexualidade. A sanção fugaz de um sujeito homossexual nacional é possível não só pela proliferação de sujeitos raciais-sexuais que invariavelmente saem de seus termos restritivos de aceitação, como outros já apontaram, mas, de forma mais significativa, pela produção e repúdio simultâneos de populações de alteridades [others] sexuais-raciais que não podem aceder [à figura de sujeito homossexual nacional].

Nas páginas seguintes exploro essas três manifestações imbricadas — excepcionalismo sexual, o queer como regulação e a ascendência da branquitude — e suas relações com a produção de corpos terroristas e cidadãos. Meu objetivo é apresentar uma descrição hábil que chame a atenção para como, por que e onde esses três fios se encontram e onde eles se imbricam, resistindo a um mecanismo de explicação que possa cobrir todos os casos. No caso do que chamo de “excepcionalismo sexual norte-americano”, uma narrativa que reivindica sucesso na organização da vida de um povo, o que é notável é que uma forma excepcional de heteronormatividade nacional agora se junta a uma forma excepcional de homonormatividade nacional, em outras palavras, homonacionalismo. Coletivamente, eles continuam ou estendem o projeto do nacionalismo norte-americano e da expansão imperial endêmica à guerra ao terror. Os termos da degeneração mudaram de tal forma que a homossexualidade não é mais excluída a priori de formações nacionalistas. Eu desvelo as formas de regulação implícitas nas noções de sujeitos queer que são transcendentes, seculares, ou, de outro modo, exemplares, como resistentes, e abro a questão da re/produção e regeneração queer e suas contribuições ao projeto de otimização da vida. A ascendência da branquitude é uma descrição da biopolítica proferida por Rey Chow, que associa a violência no uso liberal da diversidade e multiculturalismo à “valorização da vida”, um álibi que permite uma exploração desenfreada dos próprios sujeitos incluídos nos discursos de diversidade. Elucido como essas três abordagens de estudo da sexualidade, tomadas juntas, sugerem uma releitura vigorosa da biopolítica em relação ao desvio sexual [queerness] e sua intratabilidade nos acordos biopolíticos de vida e morte.

A categoria sexo, de Monique Wittig (1976/1992)

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

(Traduzido de Wittig, Monique, The straight mind and other essays. Boston: Beacon Press, 1992, p. 1–8)

A perenialidade dos sexos e a perenialidade dos escravos e senhores procedem da mesma crença e, como não há escravos sem senhores, não há mulheres sem homens. A ideologia da diferença sexual funciona como censura em nossa cultura ao mascarar como natureza a oposição social entre homens e mulheres. As categorias masculino/feminino e macho/fêmea servem para esconder o fato de que as diferenças sociais sempre pertencem a uma ordem econômica, política e ideológica. Todo sistema de dominação estabelece divisões em um nível material e econômico. Além disso, as divisões são abstraídas e transformadas em conceitos pelos senhores e depois pelos escravos, quando estes se rebelam e começam a lutar. Os senhores explicam e justificam as divisões estabelecidas como o resultado de diferenças naturais. Os escravos, quando rebelam e começam a lutar, leem as oposições sociais a partir dessas chamadas diferenças naturais.

Não há sexo. Há apenas o sexo oprimido e o opressor. É a opressão que cria o sexo e não o contrário. O contrário seria dizer que o sexo cria a opressão, ou que a causa (origem) da opressão seria o próprio sexo, na divisão natural dos sexos anterior à (ou fora da) sociedade.

O primado da diferença tanto constitui nosso pensamento que nos previne de virarmos para dentro da questão e questioná-la, independente do quão necessário seja apreender a base que a constitui. Apreender a diferença em termos dialéticos é fazer aparecer os termos contraditórios a serem sintetizados. Entender a realidade social de modo materialista dialético é apreender a termo as oposições entre classes e fazê-las se encontrarem sobre a mesma cópula (um conflito na ordem social), que é também uma síntese (a abolição na ordem social) das aparentes contradições.

A luta de classes é precisamente o que sintetiza as contradições entre duas classes opostas ao aboli-las ao mesmo tempo que as constitui e revela como classes. A luta de classes entre homens e mulheres, que deveria ser feita por todas as mulheres, sintetiza as contradições entre os sexos abolindo-os ao mesmo tempo em que os fazem entendidos. Devemos perceber que as contradições sempre pertencem à ordem material. A ideia central pra mim é que antes do conflito (rebelião, luta) não há categorias de oposição, só de diferença. Não é até que a luta se inicia que a realidade violenta das oposições e a natureza política das diferenças se tornam visíveis. Enquanto as oposições (diferenças) aparecerem como já dadas, antes de todo pensamento, “natural” — enquanto não houver conflito e luta — não há dialética, não há mudança ou movimento. O pensamento dominante se recusa a virar pra dentro de si mesmo para apreender aquilo que o questiona.

E, claro, enquanto não existir a luta das mulheres não há conflito entre homens e mulheres. É o destino das mulheres executar três quartos do trabalho da sociedade (na esfera pública e também na privada) e o trabalho corporal da reprodução de acordo com uma velocidade [rate] preestabelecida. Ser assassinada, mutilada, física e mentalmente torturada e violentada, ser estuprada, espancada, ser forçada a se casar é o destino das mulheres. E o destino supostamente não pode ser mudado. As mulheres não sabem que são totalmente dominada pelos homens, e quando se aperceberem disso, “mal podem acreditar”. E frequentemente, como a última carta na manga antes da realidade nua e crua, elas se recusam a “acreditar” que os homens as dominam com total ciência (porque a opressão é muito mais horrível para os oprimidos que para os opressores). Os homens, por sua vez, sabem perfeitamente que dominam as mulheres (“Somos os senhores das mulheres”, disse André Breton) e que são treinados para isso. Eles não precisam expressá-lo o tempo todo, já que mal se pode falar da dominação de sua propriedade.

O que é este pensamento que recusa sua inversão, que nunca questiona o que o constitui primariamente? Este é o pensamento dominante. É uma ideia que afirma um “já dado” dos sexos, algo anterior a todo o pensamento, à sociedade. Este é o pensamento dos que mandam nas mulheres.

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que comanda a força material da sociedade é, ao mesmo tempo, a força intelectual dominante. A classe que possui os meios de produção material a sua disposição tem controle ao mesmo tempo dos meios de produção mental, para que assim, falando genericamente, as ideias daqueles que não possuem os meios de produção mental sejam subordinadas. As ideias dominantes não são nada além da expressão ideal das relações materiais dominantes, pensadas como ideias[:] das relações que fazem de uma classe a dominante, ou seja, a ideia de sua dominação. (Marx e Engels, A ideologia alemã)

Esta lógica baseada no primado da diferença é o pensamento da dominação.
A dominação dá às mulheres um corpo de dados, de “naturezas” [givens], de a prioris, que, ainda mais por serem questionáveis, formam uma construção política imensa, uma rede estreita que a tudo afeta, nossos pensamentos, gestos, ações, trabalho, sentimentos e relações.

A dominação nos ensina de todos os lados que há:

  • antes de todo pensamento e sociedade, “sexos” (duas categorias de indivíduos nascidos) com uma diferença constitutiva e que possuem consequências ontológicas (a abordagem metafísica),
  • antes de todo pensamento, de toda ordem social, “sexos” com diferenças “naturais” ou “biológicas” ou “hormonais” ou “genéticas” que possuem consequências sociológicas (a abordagem científica),
  • antes de todo pensamento, de toda ordem social, uma “divisão natural do trabalho na família”, uma “divisão do trabalho [que] nada foi além da divisão do trabalho no ato sexual” (a abordagem Marxista).

Qualquer que seja a abordagem, a ideia permanece basicamente a mesma. Os sexos, por causa de sua diferença constitutiva, devem inevitavelmente desenvolver relações de categoria em categoria. Essas categorias, que pertencem à ordem natural, não podem ser chamadas de sociais. Essa ideia que impregna todos os discursos, incluindo os de senso comum (a costela de Adão ou Adão é, a Eva é a costela de Adão), é a ideia da dominação. Seu corpus discursivo é constantemente reforçado em todos os níveis da realidade social e esconde o fato político da subjugação de um sexo pelo outro, o caráter compulsório da própria categoria (que constitui a primeira definição do ser social em caráter civil). A categoria sexo não existe a priori, antes da sociedade. Enquanto uma categoria de dominação ela não pode ser produto da dominação natural, mas sim da dominação social das mulheres pelos homens, pois há apenas dominação social.

O sexo é a categoria política que funda a sociedade enquanto heterossexual. Como tal, ela não trata do ser mas de relações (já que homens e mulheres são resultados de relações), apesar de os dois aspectos sempre se confundirem. A categoria sexo é a que considera “natural” a relação base da sociedade (heterossexual) e a partir da qual metade da população, as mulheres, são “heterossexualizadas” (o feitio das mulheres é como o dos eunucos, a reprodução dos escravos e dos animais) e submetidas a uma economia heterossexual. A categoria sexo é o produto de uma sociedade heterossexual que impõe às mulheres a obrigação da reprodução da “espécie”, isto é, a reprodução da sociedade heterossexual. A reprodução compulsória da “espécie” pelas mulheres é o sistema de exploração a partir do qual a heterossexualidade é informada economicamente. A reprodução é essencialmente o trabalho, a produção das mulheres, a partir do qual a apropriação masculina de todo o seu trabalho procede. Deve-se incluir aqui a apropriação do trabalho que é “naturalmente” associado à reprodução, a criação de crianças e os afazeres domésticos. Essa apropriação do trabalho das mulheres é feita do mesmo modo como a apropriação do trabalho da classe trabalhadora pela classe dominante. Não se pode dizer que uma dessas duas produções (reprodução) é “natural” enquanto a outra é apenas social. Esse argumento é só a justificativa teórica e ideológica da opressão, um argumento para fazer as mulheres acreditarem que antes mesmo da sociedade, e em todas as sociedades, elas estão sujeitas a essa obrigação de reprodução. Entretanto, como não sabemos nada sobre trabalho, sobre produção social, fora do contexto da exploração, nada sabemos sobre a reprodução da sociedade que esteja fora de seu contexto de exploração.

A categoria sexo é o produto de uma sociedade heterossexual em que os homens se apropriam da produção e reprodução das mulheres e seus corpos através de um contrato chamado certidão de casamento. Compare este contrato ao que associa um empregador ao empregado. O contrato que liga a mulher ao homem é, em princípio, vitalício, e apenas a lei pode rompê-lo (divórcio). Ele dá à mulher algumas obrigações, inclusive trabalho não remunerado. O trabalho (rotina doméstica, criação de crianças) e as obrigações (entrega de sua reprodução em nome de seu marido, coabitação dia e noite, coito forçado, atribuição de residência implícita no conceito de “entrega de domicílio conjugal” [conjugal domicile]) significam a entrega da mulher e seu corpo a seu marido. Que a mulher dependa diretamente de seu marido está implícito na política policial de não intervir quando um marido bate em sua esposa. A polícia intervém com a acusação de assédio e agressão apenas quando um cidadão bate em outro. Mas uma mulher que assina um contrato marital deixou de ser uma cidadã comum (protegida pela lei). A polícia expõe abertamente sua aversão ao envolvimento em questões domésticas (em oposição às civis), onde a autoridade do estado não deve intervir diretamente já que passa pela [autoridade] do marido. É preciso ir a abrigo de mulheres agredidas para se dar conta do quão longe essa autoridade pode ir.

A categoria sexo é o produto da sociedade heterossexual que transforma metade da população em seres sexuais, já que o sexo é uma categoria em que as mulheres não podem se colocar de fora. Onde quer que estejam, o que quer que façam (incluindo trabalhar no setor público), elas são vistas (e feitas) como sexualmente disponíveis para os homens, e elas, seios, bunda, fantasia, devem ser visíveis. Elas devem usar sua estrela amarela e sustentar um sorriso constante dia e noite. Deve-se considerar que toda mulher, casada ou não, tem um período de serviço sexual obrigatório, um serviço sexual que podemos comparar ao militar, e que pode variar de um dia, um ano, vinte e cinco anos ou até mais. Algumas lésbicas e freiras escapam, mas há poucas, apesar do número ser crescente. Apesar de as mulheres serem visíveis como seres sexuais, são invisíveis como seres políticos, e devem aparecer o mínimo possível, sempre com alguma desculpa. É só ler entrevistas com mulheres incríveis para vê-las se desculpando. E os jornais ainda hoje dizem “dois estudantes e uma mulher”, “dois advogados e uma mulher”, “três viajantes e uma mulher” foram vistos fazendo isso ou aquilo. A categoria sexo se agarra às mulheres, elas não podem existir fora dela. Só elas são sexo, o sexo, e foram feitas sexo em suas mentes, corpos, atos, gestos; até mesmo seus assassinatos e espancamentos são sexuais. Claro, a categoria sexo abraça firmemente as mulheres.

A categoria sexo é totalitária, e para se provar tem suas inquisições, cortes, tribunais, corpus legal, terrores, torturas, mutilações, execuções, polícia. Ela molda a mente e o corpo já que controla toda produção mental. Ela agarra nossa mente de tal modo que não podemos pensar fora dela. É por isso que devemos destrui-la e começar a pensar para além dela se quisermos pensar, já que é necessário destruir os sexos como uma realidade sociológica se quisermos começar a existir. A categoria sexo ordena a escravidão das mulheres e funciona especificamente, como funcionou para os escravos negros, através de uma operação de redução, de tomada da parte pelo todo, a parte (cor, sexo) pela qual todo grupo humano deve passar, como numa tela. Perceba que em questões civis a cor e o sexo devem ser “declarados”. Entretanto, por causa da abolição da escravidão, a “declaração” de “cor” é considerada discriminatória. Mas o mesmo não ocorre com a “declaração” do “sexo”, que nem toda mulher sonha em abolir. Eu digo: está na hora de o fazermos.

Anti-sexus, de Andrei Platonov (1926)

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto abaixo na íntegra, traduzido a partir dessa versão em inglês.

Do Tradutor

Abaixo reproduzimos o texto de um panfleto publicitário publicado em oito línguas pela International Industrial Review de Nova York.

É impossível negar o talento literário e publicitário excepcional do autor e o cinismo imperialista deste trabalho, sua pornografia formal e vulgaridade grotesca, que não provoca nada além de tristeza. Entretanto, há algo no estilo desse panfleto que cheira a Anatole France, se podemos ousar pronunciar esse nobre e honesto nome; e em parte isso nos deu a coragem para publicar um trabalho tão sem precedentes.

Nenhum trabalho caracteriza a época da decadência da burguesia, sua completa atrofia moral, melhor que o texto reproduzido abaixo. Nem mesmo nós, leitores profissionais experientes, jamais lemos nada assim. Apesar de estarmos prontos para qualquer coisa que venha dos incitadores de guerras burocratas e gordos gatos fascistas e capitalistas, cujos depoimentos sobre o aparelho divulgado oferecemos, nunca pensamos que eles seriam tão desprovidos de bom senso e tato.

O camarada Shklovsky, que utilizou seu método formal para comentar com hábil ironia este disparate, foi certamente omitido do catálogo que segue.

Aparentemente não é a fisiologia que está certa (“o cérebro é um dos últimos órgãos a se decompor”), mas sim um slogan bolchevique russo, “a razão é a primeira coisa a ir embora” daqueles que a História quer punir.

Isso é perfeitamente verdadeiro, e é por isso que todo o mundo tem o mau cheiro da evidente ficção dos Anglo Euro-americanos — e de todo o setor imperialista — .

Portanto, a mais certa propaganda contra-‘antissexual’ seria a publicação deste trabalho curioso, e a partir de agora a expressão das pessoas irá mudar, seus rostos serão iluminados e enrubescidos por uma gargalhada: a melhor amiga da alma e do estômago, e a pior inimiga de toda essa insanidade industrial, moral e fisiológica.

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Anti-sexus
Aparelhos patenteados
Berkman, Châteloy e filho, Ltd.

Escritórios principais: Berlim-Londres-Geneva-Washington. Filiais: Londres, Paris, Copenhague, Bruxelas, Nova York, Varsóvia, Budapeste, Bagdá, Pequim, Singapura, Xangai, Hong Kong, Melbourne, Chicago, Frankfurt (em Oder e Main), Tóquio, Lisboa, Sevilha, Roma, Atenas, Montevidéu, Constantinopla, Angora, Calcutá, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Meca, Cairo, Belém, Alexandria, Bangkok e Damasco, com funcionários em todos os vagões da linha Hamburgo-America, além dos voos da Dereluft e Lufthansa.

Prezadas senhoras e senhores:

Quão diferentes são as épocas…quão variados são os territórios dos países…quão variadas as culturas em que nossa empresa multinacional atua. Contudo, nossos produtos patenteados têm uma procura universal, do Ártico à Antártica, até nos últimos confins, nos países selvagens entre os Trópicos de câncer e capricórnio. A paixão humana é suprema em relação ao tempo, lugar, clima e economia.

A manufatura e distribuição de nossos produtos pela indústria metalúrgica a fim de satisfazer essas paixões é de importância cósmica, tanto metafísica quanto moralmente falando. É extremamente sintomático que, contrastando a sabedoria, a taxa de vendas anuais de nosso produto — não levando em conta a situação econômica e tamanho da população — é a mesmas nas latitudes do norte e nas do sul, nos trópicos.

A partir disso nos permita concluir que a fisiologia do homem é virtualmente idêntica e permanece verdadeira independente de qualquer característica de localidade, nível de cultura, tempo, raça, presença de imprensa ou falta dela, feiura ou beleza da raça, ou outras circunstâncias externas.

Daí se vê que é claramente a satisfação completa que resulta em tal demanda. O mundo inteiro, por si só, busca consumo, não produção; o mundo nem produz o desejo pelo prazer quando não há chance de obtê-lo. Considerando nossa experiência mundial em vendas… nossa incansável procura por aperfeiçoamento dos modelos em produção atuais… nossa crescente rede de fábricas (que, em 1 de janeiro de 1926, chega a 224)… e nossa preocupação atenta com as nuances individuais dos consumidores e os resultados das modificações instrumentais de adaptação a essas nuances, decidimos incluir a União Soviética em nosso mercado externo, já que consideramos seu volume suficiente para justificar os gastos organizacionais inevitáveis associados à adaptação às especificidades de um novo mercado, considerando que qualquer sucesso comercial deve levar em conta todas as características concretas de uma situação particular. As principais autoridades morais do mundo declararam que nossas atividades não são um motivo de preocupação, é claro, para ser digna de investimento estatal e apoio privado filantrópico, algo que nossa empresa não tardou a utilizar em nosso favor, e que continuaremos utilizando. O chefe da empresa, sr. Berkman, já foi incluído na lista dos indicados ao prêmio Nobel e nos últimos anos ganhou o título honoris causa de Doutor em Ciências Éticas e Estéticas da Sorbonne. Sem tomar muito de seu valioso tempo, permita-nos compartilhar com os senhores, nas linhas mais gerais, os princípios a partir dos quais nossos fundadores construíram esta singular empresa multinacional.

A força sexual da humanidade foi reprimida durante a guerra, mas floresceu incontrolavelmente no período pós-guerra. Foi isso em parte que permitiu a nossas fábricas funcionar a todo vapor e a nossa empresa de gozar de prosperidade financeira. Mas é essa vida sexual desregulada da humanidade, tão prenha de calamidade precisamente por esse estado desregulado — é isso que causa aos fundadores da nossa empresa uma tortuosa ansiedade espiritual, e esta também é a verdadeira razão de nossa atividade afirmativa. Também há a já conhecida relação entre as sensações sexuais e a moralidade.

A santidade da antiga instituição do casamento é reconhecida universalmente, uma santidade que advém da imutabilidade do amor matrimonial e da eternidade conjugal, repleta de prazeres afirmativos supremos e da consequente pacificação espiritual. No casamento, a verdade é substituída pela paz. Mesmo que nenhum filósofo no mundo possa provar qual é melhor, a humanidade já proclamou que a paz é melhor que a verdade. E só a humanidade pode ser o objeto da atividade industrial e comercial; os filósofos não podem sê-lo.

Tendo considerado tudo isso, nossa empresa solicitou o registro de patentes em todos os países civilizados para o Anti-sexus, um dispositivo eletromagnético destinado a regular o domínio do sexo e também, a seu lado e por causa dele, a função superior do homem: sua alma, ou seja, a divindade eclipsada interior, que deve agora, finalmente, ser feita visível e disponível para uso geral, o que é um dos benefícios comuns da civilização. Um sexo desregulado é uma alma desregulada; não gera lucro; sofre e cria mais sofrimento; isso  — na era da organização científica universal do trabalho, na era de Ford e do rádio, na era da Liga das Nações, Rutherford e planos de viagens interplanetárias através da força viva contida no chamado “tijolo” de Kreuzkopf — não pode ser tolerado. O progresso segue uma linha irregular e descontínua; em outras palavras, alguns pontos individuais são deixados para trás, mancos. Nossa empresa foi convocada para equilibrar a linha do progresso; nossa empresa foi convocada para abolir a selvageria sexual da humanidade e trazer a natureza do homem de volta a uma cultura avançada de paz, e a um andamento de desenvolvimento regular, calmo e planejado.

Em uma era de crises econômicas e sociais em que o casamento é financeiramente difícil… em uma era de pensões em que é quase impossível ter filhos… em que a mulher, agora que o homem está empobrecido, mais uma vez se tornou apenas uma fantasia de poeta, fomos convocados para resolver o problema humano global do sexo e da alma.

Nossa empresa transformou a sensação sexual, um bruto impulso elementar, em um mecanismo enobrecedor, demos ao mundo o comportamento moral. Retiramos o elemento sexual das relações humanas e abrimos espaço para a pura amizade espiritual.

Entretanto, tendo em mente o prazer instantâneo e de alto valor que necessariamente acompanha o contato entre os sexos, dotamos nosso aparelho de uma construção que permite no mínimo três vezes mais prazer se comparado à mulher mais encantadora utilizada exaustivamente por um prisioneiro recém liberto após dez anos de isolamento rigoroso. É essa a medida de comparação, o quociente de qualidade de nossos aparelhos patenteados.

Além disso, um regulador especial permite aos usuários alcançar o prazer com qualquer duração, de vários segundos a vários dias, caso nosso nobre consumidor disponha de tanto tempo livre. Um disco seletor especial permite aos usuários regular o dispêndio de sêmen em unidades de volume para alcançar um nível otimizado de equilíbrio espiritual, ou seja, isso evita o esgotamento do organismo e a perda geral de força nas atividades diárias. Nosso lema é o destino espiritual e fisiológico do consumidor e o exercício de sua função sexual: tudo está em suas mãos… que descansa sob os reguladores correspondentes. E alcançamos isso.

Ademais, homens de idade avançada que saíram da comunhão sexual podem usar nossos dispositivos para novamente comungarem. Trabalhamos para todas as idades e povos.

Estamos há oito anos produzindo três modelos de aparelhos para homens e três para mulheres. O mercado evidentemente não tem demanda para variedade, graças ao vasto leque de variação possibilitado pela configuração de cada modelo, de acordo com as particularidades individuais de cada consumidor. Como uma cortesia ao nosso novo cliente, o habitante singular da União Soviética, permitimos descontos especiais de até 20% no preço de tabela e parcelamento em um ano para membros de sindicatos que comprarem coletivamente. Os preços para 1926 de nossos dispositivos são:

 1. Modelo BS300042 para uso individual, sem esterilizador- 20 dólares.
2. Modelo BS3001843 para uso por um grupo limitado de pessoas (por exemplo, homens de uma família), com esterilizador- 40 dólares.
3. Modelo BS3000000401 para uso por um número ilimitado de pessoas (para instalação em banheiros públicos, vagões de trens, alojamentos, manifestações políticas, teatros, ruas, prédios comerciais, etc.), com esterilizador automático- 100 dólares.

Os preços indicados são para retirada no depósito e não incluem descontos e embalagem. Temos os mesmos três modelos do dispositivo e do manual estão disponíveis para mulheres, com um aumento de 15% no preço. Enfatizamos novamente que nossos princípios de ação são irrepreensíveis e repousam no mais alto cume da moralidade… respeitosamente os lembramos da necessidade de organizar sua alma, sua parte mais importante… cuidamos de seus interesses econômicos os protegendo da interferência de forças sexuais elementares… por isso ousamos lhes oferecer a chance de fazer um investimento único, indispensável, a fim de eliminar os gastos com gratificação sexual da área de débito de sua conta bancária de uma vez por todas, e imediatamente se colocar no caminho da prosperidade moral e financeira.

Aguardando seus gentis comentários e pedidos, respeitosamente
Yakov Habsburg, Gerente de operações em terras Soviéticas.

Depoimentos de pessoas notáveis sobre nossos dispositivos “Anti-sexus”

A guerra é a paixão global da humanidade. Ela cessará apenas junto à vida na terra, não importando o que as pessoas cansadas e seus políticos cheios de devaneios digam. A guerra é a própria masculinidade, e permanecerá enquanto a vida continuar masculina e progressiva. Os dispositivos do sr. Berkman, sr. Châteloy e filho irão, tenho certeza, cumprir um grande papel na guerra vindoura, quando milhares de jovens reunidos nas linhas de frente serão servidos por eles.

Tão recentemente quanto na última guerra, os líderes militares contaram com os espíritos dos soldados. A castidade forçada cria um excesso de nervos. Soldados nervosos significa derrota. Precisamos de exércitos de homens com equilíbrio espiritual, que são capazes de décadas de guerra. Os dispositivos mencionados acima foram elaborados para auxiliar líderes militares em seu difícil trabalho rumo à vitória.

Hindenburg

Berkman, Châteloy e filho fundaram uma brilhante nova era em serviço moral à humanidade. Não há dúvidas que a situação histórica ideal é aquela em que o cérebro humano regula tudo no universo, e que essa regulação se manifeste como um transformador eletrônico que converte as forças selvagens da natureza em autômatos padronizados. Essa tarefa de regular a fisiologia conjugal em uma forma exata e rotineira me confrontou aos vinte e cinco anos, ao me casar, mas naquele momento o meu processo mental, distraído por exercícios mecânicos, não poderiam se concentrar nisso. Eu lamento por isso. Talvez nesse momento eu não abriria empresas para fabricar carros, talvez tivesse fabricado dispositivos que automatizassem e normalizassem a moralidade, o que é mais apropriado às minhas convicções espirituais.

Mas Berkman, Châteloy e filho anteciparam meus pensamentos juvenis e os colocaram em operação em larga escala para o bem da humanidade. Sou profundamente grato por isso.

Desejo a essa nova indústria, tão brilhantemente organizada por Berkman, Châteloy e filho, sucesso internacional. Espero que o produto beneficente dessa maravilhosa empresa se desenvolva no mercado com criadores expandindo a produção para incluir toda a população animal do planeta, não só pessoas, cujos números serão fatidicamente reduzidos pela ação dos dispositivos dessa empresa. Essa medida aumentaria os ativos no balanço da empresa e, com ele, a força moral do mundo.

Henry Ford

A análise detalhada do custo de produção do dispositivo “Anti-sexus” provou que ele é excessivamente caro. Pedi ao Departamento Financeiro para recalcular esse custo com base em nossas matérias-primas e equipamentos e verificar se poderíamos reduzi-lo. Eles relataram que reduções de trinta [porcento] são possíveis, por enquanto. A partir do próximo ano começaremos a fabricar o Anti-sexus em nossa fábrica em Detroit.

Além disso, aprovamos planos de parcelamento de até cinco anos, o que tornará o dispositivo acessível a todo cidadão.

Assim acabaremos totalmente com a prostituição, de uma vez por todas, e todos os homens desempregados também irão adquirir os dispositivos. Libertaremos também os jovens trabalhadores da obrigação de se casar, o que estabilizará seus orçamentos, permitindo-nos prosseguir sem ter que dar a eles os aumentos que tanto dificultam o contínuo progresso e as melhorias técnicas de nossas fábricas.

Ford Jr. (Ezekiel)

É melhor jogar sua semente em um pedaço de metal, se não quer transformá-la em uma árvore do conhecimento, do que no corpo indefeso de um ser humano, criado para a amizade, as ideias e a santidade.

Gandhi

Os dispositivos dos srs. Berkman, Châteloy e filho facilitam que a metrópole administre as raças coloniais agressivas e reduza o número de revoltas inúteis contra a civilização que se baseiam, como sabemos agora, em nada mais que impulsos sexuais insatisfeitos de rapazes. Também ficou muito mais fácil enviar administradores de primeira classe para as colônias agora que suas esposas não correm o risco contínuo de estupro, como costumava ser. Outra coisa: as esposas destes mesmos administradores, providas com os equipamentos da empresa, não precisam mais permitiro, aliás, convidar ao, estupro.

Chamberlain

Sou contra o Anti-sexus. Ele não possibilita a intimidade, a interação vivificante das almas, e é essa a interação primordial quando os sexos se unem, mesmo quando a mulher é um produto. Essa interação tem um valor próprio, independente do ato sexual: é a sensação efêmera da amizade e da doce afinidade, a sensação de sua solidão se evanescendo, que nenhum mecanismo antissexual pode dar. Defendo a proximidade real entre as pessoas, que elas respirem pela boca umas das outras, que um par de olhos fite outro, por como você sente sua própria alma durante um ato sexual grosseiro, pelo enriquecimento à custa de outra alma que se encontrou.

Sou, portanto, contra o Anti-sexus. Defendo o ser humano vivo, atormentado, ridículo, sem saída, que deposita seu escasso suco da vida só pra sentir um momento de fraternidade com outro ser humano. Também sou contra todas essas coisas mecanizadas porque eu sou, fui e sempre serei a favor do que é real, deplorável e ridículo, mas vivo… e disposto a se tornar poderoso.

Charles Chaplin

Comentário da Empresa

Levando em conta o protesto de C. Chaplin, e considerando que não nos furtamos de publicar depoimentos negativos, a Empresa também faz saber que solicitamos a nossos melhores engenheiros o desenvolvimento de um modelo funcional para um novo Anti-sexus, que afetará não apenas o campo sexual, mas também, e simultaneamente, os centros nervosos superiores, criando mecanicamente sensações incomparáveis de comunhão com o cosmo e amizade em um plano superior com todos os seres vivos sobre o qual o sr. Chaplin tão exaustivamente expressa seu desgosto.

A Empresa espera poder criar essa sensação de comunhão com a vida não de forma abstrata, mas na figura encantadora e concreta de um homem ou mulher (dependendo do sexo do cliente), a imagem do que for mais íntimo e desejável de acordo com a estrutura psicológica e o sistema nervoso de cada cliente. Entretanto, a Empresa não espera alcançar uma ampla distribuição desse modelo do dispositivo, já que está bem estabelecido que o amor — e pelo depoimento o sr. Chaplin se refere ao amor de verdade, embora transitório- não é uma qualidade comum a todas as pessoas, então não consideramos que uma produção baseada nele não seria comercialmente viável. O amor, como a ciência contemporânea provou, é um estado psicopático característico de certas constituições predispostas à degeneração nervosa, não de homens saudáveis e práticos. Ainda assim, trabalhamos não só para todas as idades e povos, mas também para todos os sistemas orgânicos em sua variedade, já que nossa Empresa tem como ambição, em primeiro lugar e acima de tudo, o aprimoramento moral do mundo.

Em nome da empresa, sr. Berkman.

Quando fizermos do coito um ato individual, destituindo o parceiro, quando removermos todos os obstáculos em relação ao exercício da função sexual e torná-lo amplamente disponível, estaremos rumo à castidade e ao domínio do princípio do rejuvenescimento: o uso de nossas secreções internas, nossas descargas glandulares, dentro de nossos próprios corpos.

Prof. Steinach

Depois de usar o Anti-sexus você revive sua juventude, e então dorme saudavelmente. Não durmo tão bem há vinte e cinco anos. A fonte de juventude que estava se secando em mim começou a fluir novamente. Sou muito grato aos fabricantes do Anti-sexus. Minha filha sugeriu que eu fundasse o Instituto Berkman, Châteloy e filho de Juventude Permanente. Dei a ela a autorização e o dinheiro para essa causa tão alegre.

Morgan

Com a introdução desses dispositivos antissexuais, perdemos um conjunto de movimentos poderosos que acompanhavam a paixão divina. Disso precisamos nos arrepender. Mas ganhamos um certo conforto sexual, um certo tempo economizado, o equilíbrio de uma constituição saudável e independência dos caprichos das mulheres. Isso é bem-vindo. Outra coisa: Acho que o cinema contemporâneo compensará esse conjunto de movimentos sexuais perdido os limpando de tudo que é inconsciente, bestial e elementar, e os substituindo pelo poderoso movimento aéreo de um corpo virginal pelo espaço.

Doug. Fairbanks

O futuro pertence à civilização, não à cultura: o futuro será vencido por aquele que for espiritualmente morto e intelectualmente pessimista. O casamento, estilizado espiritualmente depois de Fausto, é inconcebível no plano vulgar da verdadeira civilização; a única coisa ali concebível é o processo mecânico de descarga do excesso de força orgânica bruta que não pode ser sublimada no espírito. A máquina Anti-sexus é um outro mensageiro da era em que estamos entrando, em que a civilização é um prédio morto e confortável, cujas plantas se emaranham na verde grama de uma cultura vivaz, mas perdida.

Oswald Spengler

A máquina Anti-sexus é totalmente indispensável em viagens longas e muito fácil de usar. É totalmente obrigatório incluí-la entre os suprimentos essenciais de qualquer expedição minimamente cientificamente organizada e equipada. A presença dessas máquinas é uma ótima adição para o sucesso da expedição.

Sven Hedin

Ouvi essa canção quando estive na Rússia: Caras sortudos moram com leiteiras./Como aprendemos/Rapazes como ele têm tudo: creme e manteiga o tempo todo!

Num momento em que a Europa está empobrecendo diariamente e a Rússia não está muito melhor, e nem todo homem se casará com uma leiteira, precisamos de uma “leiteira” mecânica. O mecanismo “Anti-sexus” foi convocado pra tomar seu lugar. A humanidade gasta aproximadamente 500 bilhões de rublos por ano em prostituição, sem contar o custo indireto em saúde, a imensa perda de tempo, a existência de toda uma classe internacional, socialmente danosa, de homens e mulheres prostitutos, etc. etc.

O dinheiro que economizamos, que totalizaria por volta de um trilhão de rublos por ano, seria suficiente para comprar leite, creme e manteiga para todo homem, sem a necessidade de submeter essas delícias à dependência do casamento com uma leiteira.

Sim. Mas é o Anti-sexus, afinal, que nos faz economizar um trilhão em um ano e nos dá acesso universal ao abastecimento de leite! Portanto, ele é mais efetivo que qualquer outra reforma econômica, não importando quão revolucionária seja.

Keynes

Não escrevo. Geralmente ajo. Considero o Anti-sexus um requisito indispensável pra qualquer pessoa de cultura, obrigatório tanto em casa quanto no front. Nosso rei retirou as taxas fiscais e aduaneiras do Anti-sexus. As mulheres emancipadas dos deveres e consequências do sexo se tornarão ativos de alto valor em nosso país. Todo membro da União Fascista é obrigado a ter um Anti-sexus, e todo mundo precisa ter um, dos pedintes vadios a nosso rei soberano.

Mussolini

As mulheres também passarão, assim como as Cruzadas. O Anti-sexus virá sobre nós, inevitavelmente, como sol da manhã. Mas está claro como o dia: o ponto é a forma, o estilo da era automática, não em absoluto sua essência, que não existe. Afinal, isso é algo que não existe suficientemente neste mundo: existência. Doce vergonha tornada prática de estado, apesar de permanecer doce. Agora não é preciso viver com tanta dificuldade, como se estivesse em uma camisinha.

Viktor Shklovsky

Comentário da Empresa

Considerando que é impossível colocar todos os depoimentos aqui, a Empresa está planejando lançar três volumes dedicados especificamente às análises de nossos dispositivos feitas por pessoas célebres nas artes, ciências, social-democracia, finanças, política, comunismo, tecnologia e estética. O próximo volume terá as análises de sr. Averbakh, Zemlyachka, Kornely Zelinsky, Soong Ching-ling, Bachelis, Grossman-Roshchin, Deterding, S. Budantsev, Lawrence Windrower, Osinsky, General Po-Lu-Ghui, Tarasov-Rodionov, Prof. Westinghouse, Krishon, e muitas outras autoridades respeitadas.

Feminazis, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2019/11/29/feminazies_1766375

Este é o novo insulto que os patriarcas coloniais jogam contra nós com toda a violência totalitária que lhes foi e ainda é própria.

Desde que as mulheres passaram a falar por si mesmas, os representantes do antigo regime sexual ficaram tão nervosos que agora são eles que perdem as palavras. Talvez seja por isso os patriarcas coloniais abriram seus livros de história necropolítica para procurar xingamentos e nos jogá-los à cara, e, por uma curiosa coincidência, escolheram o que sempre têm à mão: nazista!

Dizem que somos feminazis. Dizem que não podem pegar um elevador sozinhos com uma garota — que pena! — porque ela pode ser uma “feminazi” e acusá-los de estupro. Dizem não poder mais praticar livremente a arte viril do galanteio francês. Dizem que as mulheres tomaram o poder nas universidades, que ganham prêmios literários e que elas, as bêbadas dos gender studies, mandam no cinema e na mídia. Ao virarem de ponta-cabeça as posições de hegemonia e subalternidade, os pais do tecnopatriarcado conferem poder absoluto às minorias sexuais, mulheres, pessoas trans, homossexuais, bichas, gouines e corpos não binários; eles transferem fantasticamente para si a violência totalitária que lhes foi e ainda é própria. Como é possível utilizar o adjetivo “nazista” precisamente para os corpos que o nazismo considerava menos que humanos e dispensáveis?

Nada justifica o uso do adjetivo “feminazi” para se referir às demandas de reconhecimento das mulheres, trans, homossexuais ou pessoas de sexo não binário enquanto sujeitos políticos soberanos. Não acho que valha a pena se perder em um debate teórico. O melhor e mais eficaz dos argumentos é se ater aos fatos.

Quando violarmos e desmembrarmos o mesmo número de homens quanto vocês fizeram com mulheres, ou homossexuais ou transsexuais, simplesmente por serem homens ou por seus corpos ou práticas não se enquadrarem no que entendemos por uma boa masculinidade heterossexual submissa, aí sim podem nos chamar de feminazi. Quando decidirmos em um Parlamento composto apenas por mulheres, em um conselho administrativo composto apenas por mulheres, que um homem, pelo simples fato de sê-lo, deva receber menos que uma mulher independente do emprego ou das circunstâncias, aí sim podem nos chamar de feminazis. Quando forem proibidos de gozar fora de uma vagina sob pena de aborto e todas as suas práticas sexuais fora de sua cama heterossexual forem consideradas grotescas ou patológicas, aí sim podem nos chamar de feminazis. Quando suas pernas tremerem ao atravessar uma rua escura e procurarem com medo as chaves de sua porta em seus bolsos para entrar em casa o mais rápido possível, quando uma silhueta feminina no fim de um beco os fizerem virar e correr, quando as ruas de todas as cidades forem nossas, aí sim podem nos chamar de feminazis. Quando as escolas ensinarem só os livros de Gertrude Stein e Virgina Woolf e James Joyce e Gustave Flaubert forem considerados escritores “masculinistas”, quando os museus de arte dedicarem uma semana por ano a explorar a arte desconhecida dos “artistas masculinos” e quando os historiadores publicarem uma revista por década para falar sobre o papel dos “homens invisíveis da história”, aí sim, neste momento, vocês podem nos chamar de feminazis.

Quando psicólogos, psicanalistas e psiquiatras, especialistas em sexualidade humana, forem exclusivamente lésbicas radicais, e elas se reunirem em assembleias fechadas para determinar a diferença entre a masculinidade normal e a patológica, quando ao invés de comentar Freud e Lacan interpretarmos sua sexualidade masculina heterossexual, suas expectativas e seu prazer a partir das teorias de Valerie Solanas e Monique Wittig, aí podem nos chamar de feminazis. Quando suas mães, tias, primas, irmãs, amigas e esposas sempre tiverem algo a dizer sobre como se vestem, seu estilo, seu modo de falar, como são feios ou gordos, bonitos ou magros, constantemente, em voz alta, na frente de todos, e fingirem agradá-los com essa forma de controle, quando chamarmos essa forma de linguagem de “galanteio feminino”, aí pode nos chamar de feminazis. Quando sairmos em grupo para pagar um trabalhador do sexo precário que encontramos seminus nos acostamentos nos arredores das cidades, um jovem frequentemente imigrante que não conhece o direito ao trabalho, considerado como um criminoso, e uma força policial composta quase que exclusivamente por mulheres tiver direito de estuprá-lo e assediá-lo, aí sim, neste momento, enquanto pagamos cinco euros a um trabalhador do sexo por uma chupada no clitóris num carro, aí podem nos chamar de feminazis.

E mesmo se um dia os dominemos, exilemos, estupremos e matemos, se realizarmos uma façanha histórica de exermínio, expropriação e submissão comparável a sua, seremos simplesmente como vocês. Então sim, neste momento poderemos compartilhar com você o adjetivo “nazista”. Mas para estarmos no auge de suas técnicas políticas patriarcais precisaríamos de um imenso trabalho coletivo e do estabelecimento de um ódio organizado e uma indústria da vingança que, honestamente, não imagino e nem desejo. No momento, e digo isso com a objetividade que levaria um cientista a perceber a diferença entre o número de grãos de areia no deserto do Saara e o grão de areia que entrou em um olho, ainda há espaço. Muito, muito espaço.

2020 a exploração 2.0, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 - 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/01/17/2020-l-exploitation-20_1773699

Falsas contas no Insta, falsos comentários sobre produtos ou serviços, essas novas atividades são pagas aos trabalhadores subalternos e fazem da internet um mercado digital.

Do apartamento 2020 do prédio Avalon em Toronto se pode ver o dia morrer como os astronautas veem a margem do fogo do sol se esconder por trás do perfil do planeta azul. E se 2020 não tivesse sido um ano, mas um apartamento suspenso na história do cosmo?

Toda manhã caminho do Avalon pelo caminho dos filósofos e chego à biblioteca Robarts, um conglomerado de triângulos brutalistas com arestas de concreto de 100 metros por entre os quais Umberto Eco escreveu O nome da rosa. Eco imaginava a biblioteca da Idade Médica em que o Livro do riso de Aristóteles foi destruído enquanto estava em uma das bibliotecas mais futuristas do século 20, cercado por quatro milhões de livros. Nós projetamos o presente no passado e alucinamos o futuro enquanto acreditamos que estamos olhando para o presente.

Num futuro próximo, dois em cada três trabalhadores farão atividades puramente digitais. Não falo da invenção recente dos bio-robôs, mas da antiga habilidade de transformar o corpo e a alma humanos em próteses vivas que suplementam a máquina.

Alguns dias atrás, um curador de exposição de uma instituição artística de Toronto me confidenciou que, dado o seu volume atual de trabalho, ele contratou os serviços de uma pessoa no Paquistão para gerir e alimentar sua meia dúzia de contas no Instagram: uma dedicada à arte contemporânea, outra à arquitetura japonesa, outra à poesia experimental e duas ou três, aparentemente as mais exigentes, sobre as novas modas de unha — a produção de Rosalía sobre unhas se mostrou mais difícil de seguir que as ligadas às exposições do Moma. “Eu o pago em torno de vinte dólares por mês, o que pra mim não é nada, e pra alguém no Paquistão é mais que um salário médio.” O curador não sabe nem a idade nem o estado familiar ou social do trabalhador digital que contrata — ele pode nem ser uma só pessoa: ele apenas mantém contato com ele/ela/elx por meio da uma conta na internet e no banco. Irei utilizar o plural feminino para refletir essa multidão subalterna. Todo dia, essas trabalhadoras digitais anônimas estudam os arquivos do Instagram do curador, se conectam a centenas de outras contas do Instagram sobre arte contemporânea, arquitetura japonesa, poesia experimental e sobre cosmética de unhas e produzem novos conteúdos relevantes. Graças a um painel que centraliza todas as contas e permite a análise estatística, uma trabalhadora digital pode gerir cerca de 400 contas simultaneamente. Os processos de seleção e edição do material das diferentes contas se chama digital curating, “curadoria digital”. O curador é, por sua vez, curado. “Nem tenho tempo para olhar”, disse o curador. “Mas eles realmente fazem um bom trabalho, têm muito mais likes que eu poderia ter.”

Trabalhadoras digitais no Paquistão estão construindo a face imaterial de um célebre curador de arte. Apesar da relação que cada um de nós estabelece com sua conta na Internet, Facebook ou Instagram parecer pessoal e subjetiva, cada existência digital é o produto de uma cooperação eletrônica invisível. Para dizer como Marx, qualquer parede crepitante esconde um processo de exploração e extração coletiva de mais-valia digital. Um rosto no Facebook é uma mercadoria. Uma identidade é obra de um curador digital — mesmo se você acreditar que esse curador é você. Nós pagamos para construir uma máscara digital para nós mesmos enquanto buscamos imitar as máscaras que os outros também compram.

Os alunos da universidade de Toronto me dizem que muitos deles ganham uma mesada para escrever comentários na Internet para empresas diferentes: eles falam das virtudes de biscoitos que nunca comeram, falam das vantagens de um novo programa de yoga em uma academia em Alberta em que nunca foram, eles mencionam a facilidade de montar uma luminária que nunca montaram ou comentam livros que nunca leram mais que um resumo de 1800 caracteres fornecido pelo editor. “Escrevemos bem e rapidamente”, diz um deles, “e isso é o que é mais valioso nesse tipo de trabalho. Em uma noite, depois da aula, posso fazer entre cinquenta e cem comentários. Tem regras muito rígidas, não só de número de caracteres, mas também de estilo e avaliação, mas se pega o jeito rápido”. Dois em cada dez comentários podem ser ligeiramente negativos, mas três devem ser categoricamente positivos. Os mais bem pagos são os comentários que alimentam redes sociais de serviços sexuais: envolve fingir ser um cliente e dar uma nota ao serviço fornecido por um ou uma trabalhadora sexual: qualidade do lapdance, do strip-tease, da higiene, do tempo gasto, do envolvimento erótico e satisfação em geral. “Você precisa de um pouco mais de imaginação pra isso, mas como são comentários curtos, são fáceis de fazer”. No período de campanha eleitoral, só comentários políticos são mais lucrativos que os de serviços sexuais, mas é preciso fazer mais de cem por dia para ser rentável. A Internet não é um lugar público, mas um mercado digital.

Do apartamento 2020 do prédio Avalon, se pode ver o dia nascer como os indígenas chippewas podem ter visto anos atrás, o sol como uma águia bebê abrindo suas asas douradas por trás dos arranha-céus. Nos jardins no topo dos prédios de Toronto as árvores embaladas em plástico colorido se parecem com as avós em mantilhas espanholas que, balançadas pelo vento, recebem o sol dançando sevilhanas. Do apartamento 2020 do prédio Avalon é possível imaginar o futuro do capitalismo: as cristas de concreto da biblioteca Robarts transformadas em pirâmides de um deserto nuclear e os livros em novos hieróglifos que ninguém conseguirá decifrar.

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Textos

  • Hino ao corpo, de Paul B. Preciado
  • Tudo deve mudar, de Paul B. Preciado
  • Por um monumento à necropolítica, de Paul B. Preciado
  • Voltem, corram!, de Paul B. Preciado
  • Os Psiconazis, de Mario Mieli (1980)
  • Homonacionalismo e biopolítica, de Jasbir K. Puar (2007)
  • A categoria sexo, de Monique Wittig (1976/1992)
  • Anti-sexus, de Andrei Platonov (1926)
  • Feminazis, de Paul B. Preciado
  • 2020 a exploração 2.0, de Paul B. Preciado
  • Inexistentes, de Paul B. Preciado
  • A quarta onda, de Paul B. Preciado
  • A velha academia em chamas, de Paul B. Preciado
  • O Brexit e minha dor lombar, de Paul B. Preciado
  • A conspiração dos losers, de Paul B. Preciado
  • Aprendendo com o vírus, de Paul B. Preciado
  • O doente digital, de Paul B. Preciado
  • As palavras que eu não posso lhes dizer, de Paul B. Preciado
  • Estávamos prestes a fazer a revolução feminista… e então chegou o vírus, de Paul B. Preciado
  • Corona fashion, de Paul B. Preciado

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