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BIXALOKA

"É um rizoma, uma toca…"

Author: Ninguém

Inexistentes, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/01/31/inexistants_1776544

Apesar de não existir, a identidade “mulher” pode lhe custar a vida em Tijuana. Apesar de não existir, a identidade “trans” pode lhe custar a vida em Paris. A raça também não existe, mas a identidade racial pode lhe impedir de cruzar uma fronteira.

Se a metafísica contemporânea deixou de lado o debate escolástico sobre os universais que ainda era presente à época do estruturalismo francês, muitos dos sofismas dessa querela reaparecem hoje com mais intensidade nos debates sobre a identidade — nacional, sexual, de gênero, racial, etc. A inflação da retórica identitária no último século nos conduziu a uma encruzilhada estranha que afeta ao mesmo tempo as novas formas da hegemonia e as possibilidades de expressão dos antagonismos.

Este é o primeiro paradoxo: apesar de provenientes dos processos de descolonização e despatriarcalização, os movimentos de emancipação das minorias subalternas (raciais, de gênero, sexuais, etc.) acabaram se cristalizando em políticas de identidades. Longe de desmantelarem regimes de opressão racial, sexual ou de gênero, as políticas identitárias acabaram renaturalizando e até mesmo intensificando as diferenças, ao ponto de as transformar em verdadeiros desafios políticos. A linguagem contemporânea da “interseccionalidade”, com sua insistência em estabelecer relações entre identidades anteriormente segmentadas (sexo, raça, classe, gênero, sexualidade, deficiência, etc.), é apenas uma miragem metodológica frente à impossibilidade de se articular uma filosofia política não essencialista capaz de pensar a transversalidade com a qual as relações de poder produzem e opõem as diferenças.

Por outro lado, o processo de contrarrevolução, que começou com a expansão do neoliberalismo e tomou forma definitiva a partir da crise econômica de 2008 e os fracassos democráticos que a seguem, se apropria, agora de modo reativo, das linguagens da identidade para estabelecer, sobre a essência “nacional”, “heterossexual”, europeia”, “branca”, ‘cristã”…, novos processos de exclusão e limpeza sociais. Neste contexto neoconservador de exaltação de linguagens naturalistas, populistas e patriarco-coloniais nacionalistas, é urgente reconsiderar a possibilidade de levar a sério (agora a partir de uma releitura transfeminista e anticolonial) o que poderíamos chamar de empirismo político radical de Foucault: sua teimosia em afirmar a identidade como “inexistente”. Herdeira de Foucault, a filosofia política contemporânea está mais próxima da mecânica quântica que da física newtoniana. Em primeiro lugar, poderíamos dizer que o que é próprio às identidades, enquanto entidades ontológico-politicas inexistentes, é precisamente não serem objetos, o que não quer dizer que são enteléquias, simples ideologias, estruturas simbólicas ou conceitos puros desprovidos de qualquer materialidade. Pelo contrário: apesar de não existirem, as identidades enquanto entidades ontológico-políticas têm uma materialidade densa. É nessa estranha paisagem ontológico-política, ao mesmo tempo vazia e terrivelmente espessa, feita de objetos que não existem mas cujos efeitos podem ser fatais, que o filósofo contemporâneo navega.

Em termos ontológico-políticos, a identidade é “algo” que, sem existir, irrompe no domínio do tangível, torna-se visível, mensurável, quantificável. Ela não existe e ainda assim todo o sistema administrativo e arquitetônico de uma sociedade se comporta como se existisse. De tal modo que mesmo sem existir, torna-se tangível, visível. Parece mais real que a realidade. Sem existir, a identidade torna-se o argumento decisivo das narrativas que definem uma era, o parâmetro central pelo qual o reconhecimento político e a soberania são atribuídos. Então, apesar de não existir, a identidade “mulher” pode lhe custar a vida em Tijuana e bem mais perto de casa que em Tijuana. Toda sua vida é definida por ela. Apesar de não existir, a identidade “trans” pode lhe custar a vida também em Paris. A raça não existe, mas a identidade racial pode lhe impedir de cruzar uma fronteira, de alugar um apartamento, de conseguir um emprego. A própria modalidade de sua “inexistência” permanece intangível, e ainda assim, através da discriminação e da exclusão, pela regulação da vida e da morte, as condições aparentes da prova empírica da existência das identidades aparecem. Isso é o que se pode chamar de princípio de incerteza identitária na filosofia política: o povo não existe, a nação não existe, a raça não existe, a diferença sexual não existe, a homossexualidade e a heterossexualidade não existem, a esquizofrenia não existe, a transexualidade não existe e, ainda assim, esses “inexistentes” são a infraestrutura do poder e da dominação cotidiana. O paradoxo da existência inexistente da identidade se intensifica e adquire a consistência de uma piada metafísica quando as condições da enunciação filosóficas são determinadas pela aparência do corpo do filósofo de acordo com os parâmetros de uma (ou várias) dessas identidades inexistentes. Seria possível afirmar a não existência da homossexualidade, ou da transexualidade, por exemplo, quando ocupei historicamente a posição do homossexual ou do transexual — encarná-la, habitá-la? O que significa falar como transexual, como homossexual, como um corpo racializado se a transexualidade, a homossexualidade e a raça não existem? Ainda não estamos de luto por aqueles que, tendo sido marcados por uma identidade inexistente, não puderam existir de outro jeito. Não começamos ainda a falar sem repetir a linguagem mortífera da identidade inexistente.

A quarta onda, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/02/14/la-quatrieme-vague_1778454

Ou a quarta revolução, o fim da soberania patriarcal-colonial e a aurora de uma nova era que une avós e netas estupradas.

 

Um dia um/a historiador/a do futuro pós-patriarcal se lembrará que foi nesta década que centenas de milhares de mulheres de todo o mundo se manifestaram para denunciar um estupro cometido por seu pai, por seu amigo, por seu tio, por um produtor de filmes, por um colega de trabalho, por um marido, por um namorado, por um ex-namorado, por um padre, por um professor, por um treinador esportivo, por um cantor, por um motorista de ônibus, por um grupo de estrangeiros, por um fotógrafo de moda, por um grupo de amigos, por um apresentador de televisão, por um artista de renome internacional, por um cantor de ópera, por um juiz, por um agente comercial, por um advogado, por um barman, por um antropólogo, pelo dono de um bar, por um policial, por um matemático, por um bispo, por um psiquiatra, por um amigo de seu namorado, por um youtuber, por um católico, por um judeu, por um muçulmano, por um budista, por um agnóstico, por um ateu convicto, por um místico, por um guru de uma religião desconhecida, por um fundador de seita, por um hippie, por um amante de música clássica, por um yuppie, por um punk, por um roqueiro, por um rapper, por um trapper, por um psicanalista, por um filósofo, por um diretor, por um ginecologista, por um presidente da República, por um professor emérito do Collège de France, por um sociólogo, por um presidente de comissão de prêmios literários, por um comunista, por um diretor de campanha de um partido político, por um diretor de teatro, por um socialista, por um vendedor de tralhas, por um membro do Reagrupamento Nacional, por um diretor de museu, por um apresentador de televisão, por um motorista de táxi, pelo filho de um amigo, por um agente de segurança, por um arcebispo, por um diretor de orquestra, por um oftalmologista, por um liberal, por um médico sem fronteiras, pelo melhor amigo da família, por um escritor, por um bibliotecário, por um diretor de museu, por um instrutor, por um ecologista, por um inspetor alfandegário de aeroporto, por um líder de escoteiros, por um yogi, por um capacete azul [agente de paz das Nações Unidas], por um pediatra, por um diretor de centro cultural, por um pintor, por um médico da família, por um caçador, por um vizinho, por um toureiro, por um ator, por um irmão, por um acupunturista, por um jornalista, por um primo, por um cunhado, por um técnico de caldeira a gás, por um transportador, por um massagista, por um general do exército, pelo presidente de uma comissão acadêmica…

Um dia um/a historiador/a do futuro pós-patriarcal se lembrará que foi nesta década que centenas de milhares de mulheres de todo o mundo se manifestaram para denunciar um estupro em um estúdio de filmagem, no escritório, na universidade, em sua própria casa, em sua própria cama, na escola, em um carro num curto trajeto de Uber, em uma boate, fora de uma boate, em uma rua vazia, em uma casa onde trabalham como empregadas, no subsolo de seu prédio, pedindo carona, em um ônibus, nos vestiários da piscina, durante uma aula de piano, no ginásio, no dormitório do internato, no chuveiro do hospital, no dormitório do quartel, numa floresta durante uma corrida, na sala de depoimento num interrogatório policial, num quarto de hóspedes, num corredor de metrô, numa sala de descanso, em uma sinuca, no carro indo para um show, no show, depois do show, em uma barraca, nas escadas de seu prédio, no banheiro de sua casa, na cama de seus pais, no consultório do dentista, no escritório do diretor, em um elevador, em um quarto de hotel, na sala de espera, na academia, na cozinha de sua casa, no carro de seu namorado, no escritório do reitor, na sala de reunião no trabalho, no consultório do ginecologista, na sala de consulta psiquiátrica, na sacristia…

Um dia um/a historiador/a do futuro pós-patriarcal se lembrará que todas as mulheres estupradas do mundo, todos os corpos sexuais subalternos, as meninas estupradas, os meninos estuprados, as crianças estupradas, todos os corpos tratados há séculos como dispositivos masturbatórios vivos a serviço da libido patriarcal-colonial, se reuniram para dizer “BASTA”. Lembraremos como elas passaram do grito individual #MeToo ao grito coletivo de Ni Una Menos, como elas ocuparam as ruas cantando “El violador eres tú”. Falaremos desses anos como a quarta revolução, aquela que juntou as avós estupradas às netas estupradas. Falaremos dessa época como o começo do fim da soberania patriarcal-colonial e o início de uma nova era transfeminista.

A velha academia em chamas, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/03/01/l-ancienne-academie-en-feu_1780215

Defender e recompensar Polanski é uma urgência simbólica; protege não “a liberdade da arte”, mas a submissão à soberania heteropatriarcal. Algo frágil e grotesco frente ao poder de Adèle Haenel.

Uma cerimônia do César geralmente não possui nenhum interesse filosófico ou político. Entretanto, em um momento de reorganização das políticas de gênero e sexualidade, uma gala televisionada para dois milhões de espectadores adquire a consistência de um ritual político, uma “paralinguagem social”, para usar as palavras de Lévi-Strauss, que teatraliza publicamente as posições do poder, pondo em cena sua crise e sua reinscrição normativa, mas também abrindo a possibilidade de fazer visível seu fracasso.

Confrontado com uma crítica sem precedentes pela dominação masculina, das primeiras acusações do #MeToo às declarações públicas de Adèle Haenel, a cerimônia do César de 28 de fevereiro se converteu em um ritual destinado à restauração mítico-mágica da soberania heteropatriarcal em crise de seus chefes. A cerimônia encenou um dos ritos constitutivos da cultura heteropatriarcal dominante que se pode chamar tecnicamente de “um ritual de exaltação do estuprador e de punição da menina estuprada (falante)”. O que é interessante neste ritual é que ele não foi constituído por uma elite masculina para governar um conjunto de corpos femininos subjugados, mas que ele é uma prática social em que participam voluntária e ativamente os assim chamados governantes e governados, de modo que é por essa repetição ritual que suas posições sexuais e de gênero são fixadas e definidas — ou negadas.

A cerimônia do César foi um ritual heteropatriarcal de restauração mítico-mágica do estuprador Polanski e de exclusão e morte da vítima que fala, Adèle Haenel. O heteropatriarcado se caracteriza pela definição necropolítica de soberania masculina, ou seja, pela ideia de que um corpo adulto branco é masculino na medida em que pode legitimamente utilizar a violência sexual contra todo outro corpo marcado como feminino, não branco ou infantil. Nesse sentido, o heteropatriarcado não considera apenas o estupro como uma possibilidade, mas o exige, ao menos conceitualmente, como condição de possibilidade do exercício da soberania masculina heterossexual. É por isso que, na ordem heteropatriarcal, Polanski não aparece como um criminoso, mas como uma vítima da rebelião feminista. Pobre Polanski: ele sonha em ser o Dreyfus do movimento #MeToo. O argumento da separação do homem do artista — que não apenas o salva, mas, mais ainda, recompensa Polanski — esconde sua posição estratégica dentro da ordem heteropatriarcal. Polanski não é protegido por ser um artista. Ele é protegido por ser um peso pesado da indústria cinematográfica, um homem branco e heterossexual. É sua condição como chefão e heteropatriarca da indústria cinematográfica e não sua condição de artista que o protege. Defender e recompensar Polanski é, portanto, uma urgência simbólica, para proteger não “a liberdade da arte”, mas a submissão à soberania heteropatriarcal. Essa é uma tarefa tão urgente quanto coletiva, e é por ela que continuamos convocando os homens e as mulheres da academia, e também os Brancos e os Negros, e também os Árabes e os Judeus. O grande capital heteropatriarcal prefere a submissão universal às diferenças identitárias.

Em segundo lugar, o heteropatriarcado se define pela negação da soberania sexual e política das mulheres fora dos limites da relação heterossexual e do prazer masculino. Então, a menina estuprada, o menino estuprado, o homem ou a mulher ou trans estuprados não têm o direito de falar e não são mais considerados sujeitos políticos quando o fazem. Por consequência, a homossexualidade feminina é considerada sexualmente anormal e deve permanecer politicamente invisível. É possível representar a homossexualidade feminina como um fantasma do desejo masculino, mas não como uma posição política e sexual autônoma. Adèle Haenel quebrou essas duas regras do heteropatriarcado: primeiro, ela falou, e o fez publicamente sobre os abusos sexuais dos quais foi objeto. Depois, ela afirmou publicamente sua preferência sexual pelas mulheres e incarnou o desejo sexual lésbico em Portrait de la jeune fille en feu [Retrato de uma jovem em chamas]. Adèle é uma Joana D’Arc do movimento #MeToo francês que a academia se apressou para queimar ritualmente durante a cerimônia de premiação. Mas como todo ritual coletivo, esse também foi suscetível a resultar em um fracasso performativo.

O que está em jogo aqui não é a honra do velho e corrupto Polanski, mas a hegemonia heteropatriarcal da academia de cinema. O cinema é importante não porque é uma “arte”, mas porque é, como explicou Teresa de Lauretis, uma das tecnologias fundamentais para a fabricação e distribuição dos códigos do gênero e da sexualidade. Ele é uma das máquinas culturais centrais na produção do imaginário audiovisual heteropatriarcal: uma usina de representações normativas (ou dissidentes) de gênero, de sexualidade e de raça. A função dessa tecnologia é redobrada por sua posição hegemônica dentro da indústria cognitiva do capitalismo mundial. Em outros termos, o cinema é, para a indústria cultura, o que a indústria farmacêutica é para as políticas de normalização da reprodução sexual.

Pode-se então perguntar por que continuamos esperando ingenuamente que uma das indústrias mais poderosas e normativas do planeta tenha um potencial crítico e emancipatório. Poderíamos imaginar uma cerimônia de premiação da indústria petroleira em que Davi Kopenawa Yanomami entregasse o prêmio do antropoceno à Total?

A academia sonha que a mulher estuprada tenha a mesma posição em sua indústria que a vaca na indústria alimentar. Como a vaca, há mulheres heterossexuais em todo o cinema, celebra-se seus corpos… mas acima de tudo, comemos seus corpos (dentro e fora da tela). A academia de cinema simplesmente parece esquecer que, diferente da vaca, a mulher estuprada produz um conhecimento político de seu próprio processo de submissão. A mulher estuprada fala, deseja e se torna sujeito político. É essa a revolução a que assistimos. É essa emancipação do objeto do desejo (e da violência) do cinema que a academia não pode suportar.

Essa cerimônia do César foi caracterizada pela exacerbação ritual de todas as suas contradições, pela espetacularização pop do sofrimento, mas também da submissão da vítima e finalmente pela exaltação do criminoso. E nessa corografia [coreografia?] cada um faz seu papel. Como todo ritual de restituição de uma hegemonia em crise, a cerimônia da academia deve induzir a unificação de teorias disjuntas, a superação dos antagonismos e contradições. Nas palavras de Lévi-Strauss, por uma ação ritual, “todos os participantes são levados a passar para o lado do vencedor”. E é isso que acontece quando Mathieu Kassovitz fala da necessidade de preservar a sedução entre homens e mulheres no cinema — imagine se, no lugar de Mathieu Kassovitz, estivesse Céline Sciamma falando do direito das mulheres a continuar seduzindo os homens e do direito das mulheres a seduzir as mulheres no cinema! Mas isso não está acontecendo. O que acontece é o que Kassovitz nos explica, enfatizando seu papel de pai heterossexual ao consultar sua filha, para nos dar um elogio da sedução masculina que Adrienne Rich chamaria de “heterossexualidade compulsória” da indústria do cinema.

Também foi necessário, em um bom ritual de exaltação do estuprador, uma pequena dose de crítica da pedofilia, como uma vacina homeopática. É o que acontece quando Swann Arlaud toma a palavra para falar dos fatos que inspiraram seu papel… mas sem nunca mencionar Polanski. A mesma superação das contradições se opera enquanto duas mulheres, Emmanuelle Bercot e Claire Denis, anunciam o nome do vencedor do César de Melhor Diretor. O resto é um exercício de obediência aos ditames do gênero, do sexo e da raça: Anaïs Demoustier e a equipe de Ladj Ly celebram suas vitórias sem dizer uma palavra sobre Polanski. O capitalismo heteropatriarcal não é uma batalha dos homens contra as mulheres. Nem todos os homens são predadores, nem todas as mulheres são feministas. Ele também não é uma associação de minorias para criticar a norma. Nenhuma indústria tolera trabalhadores dissidentes. É uma batalha pelo monopólio da soberania heteropatriarcal e o controle das forças de produção contra qualquer um que mostre dissidência, seja homem, mulher, trans, não-binário, racializado ou branco. E que o cinema continue uma celebração capitalista e heteropatriarcal!

De frente ao estuprador premiado, de frente à indústria do cinema, Adèle está só. A menina abusada que fala em público deve ser isolada, exposta, como uma bruxa, se não literalmente queimada em público, ao menos simbolicamente cremada. De suas cinzas renasce Polanski na forma de uma fênix na qual ninguém acredita no cinema, mas que ninguém ousa denunciar.

Até então o ritual pareceu efetivo.

Adèle estava nessa cerimônia, mais que nunca uma menina em chamas.

Porque o ritual falhou. A menina estuprada não é mais um corpo dócil, passivo e silenciado. Ela não é mais uma vítima. Ela é um sujeito político.

Adèle se levanta, suas costas retas, seus olhos brilhantes, diz “que vergonha” e sai da sala.

É esse o ponto culminante do ritual de punição da menina estuprada que fala e da exaltação do estuprador. Mas esse instante é também o fracasso performativo do ritual. A academia quis impor sua arquitetura heteropatriarcal, mas ela se provou frágil e grotesca. E ao fazê-lo, ela abriu a porta para a resistência e a crítica.

Adèle, estamos com você. Quando se levanta, nos levantamos e saímos da sala com você. O ritual se inverte por sua força: a academia está em chama e você está viva. Porque se a indústria do cinema pertence aos chefes e aos estupradores, o futuro pertence aos estuprados e estupradas dissidentes que saem da sala. E que a festa continue em outro lugar!

O Brexit e minha dor lombar, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/03/01/le-brexit-et-mon-lumbago-par-paul-b-preciado_1779976

 

Impressões e dores de um corpo que atravessa fronteiras em tempos de epidemia.

Retorno à França depois de fazer uma série de conferências na Inglaterra, onde pude testemunhar em primeira mão o fracasso do Brexit: algumas semanas após a instauração de uma nova fronteira dura, os populistas ingleses foram vencidos… por um vírus microscópico. Quinze casos de coronavírus já foram reportados na ilha. Um vírus pode ser declarado estrangeiro? Uma fronteira pode realmente ser fechada? A pesquisa do “paciente zero” do coronavírus nos hospitais da Itália e da Inglaterra lembra a caça às bruxas da crise da AIDS: disseram que o paciente zero era um macaco (não há miséria humana pela qual nosso irmão subjugado não seja culpado cedo ou tarde), ou que era um homossexual hiperativo que — porque era preciso fazer uma tabela de contágio — deve ter fodido em vinte países diferentes e saltado de cama em cama, ágil e leve como uma pulga, para penetrar tantos buracos quanto possível. Nos tempos da AIDS não havia a questão de fechar as fronteiras. A questão era fechar o ânus. Com o Brexit, a Inglaterra já encontrou uma forma de fechar o seu, mas o coronavírus encontrou um outro caminho. Coronexit!

Depois de atravessar a fronteira inútil do Reino Unido para voltar à antiga Europa unionista, fui golpeado não pela alegria de sair da ilha dos puros, mas por uma crise banal de dor lombar. Num primeiro momento me senti exausto, então deitei em minha cama e dez minutos depois não pude mais me levantar. Eu sou um peso que meu pensamento não pode mais levantar. A dor toma todo meu corpo. E também minha alma, se ela existe. Apesar de acontecer em minhas costas, a dor lombar é como o neoliberalismo: ele parece agir localmente, mas suas consequências invadem todo o corpo. Acredito poder me mover, mas, sem nenhum aviso, uma corrente atravessa meu corpo e fico parado, como se alguém tivesse congelado minha imagem. A dor faz de minha solidão e falta de proteção mais evidentes. Virginie me leva ao consultório de osteopatia. Ela me deixa na porta e eu, que só consigo andar e sentar com dificuldade, espero de pé, como um objeto próximo a um balde de guarda-chuvas na entrada. Por alguns instantes me divirto sendo idêntico a esse objeto em sua passividade, talvez porque os objetos, ao menos como acreditamos, não sofrem.

A osteopata é muito jovem e tem grandes mãos brancas. Ela me olha e diz imediatamente: lombar. Tiro a roupa com dificuldade e deito na mesa. A osteopata coloca a palma em meu sincipúcio e a outra em meu cóccix, então suas duas mãos mexem em uníssono, uma encontra a ponta de meu nariz, a outra procura a ponta de meus pés, e de novo, sua palma descansa, como um pequeno pássaro nas costas de um búfalo, em meus ombros, enquanto a outra pressiona meu quadril. E assim, pouco a pouco, todo meu corpo, ou quase todo, é tocado. Lá fora, o vento sacode as árvores e os postes. Se diz que um homem morreu pela queda de uma árvore sobre seu carro perto do museu Quai-Branly. Lá fora, diz o presidente da República, uma epidemia ameaça a França. Pra que servem as fronteiras [?]. Mas nada disso parece real enquanto estou deitado nesta mesa, meu corpo esticado como uma folha rasgada flutuando na superfície da água.

Apesar de estar seminu, pareço um homem qualquer. Após me examinar, ela não disse nada, não perguntou nada. Estou esperando sua pergunta. Tenho medo. A pressinto. Mas ela não disse nada. Enquanto me visto, pergunto: “Talvez tenha percebido ao me examinar que sou trans.” “O que quer dizer?”, ela pergunta. “Que eu era uma mulher antes e agora sou um homem”. Ela enrubesce. “Ah”, diz. “Sim, sim, percebi algo”. Mas a surpresa em seu rosto é mais visível que a confirmação de uma intuição passada. Se instala um silêncio breve, mas pesado. Então sua voz quebra o silêncio: “Você é a primeira pessoa trans a vir ao meu consultório e não sei exatamente como cuidar de você. Há algo especial em ser uma pessoa trans que você devesse me falar?” Eu digo, “A única coisa importante era dizer. Já o fiz. O resto é idêntico. Você pode achar órgãos que estão onde deveriam estar e outros que não estão. Mas tudo está certo.” “Nunca imaginei que ser trans fosse assim”, diz a osteopata. E ela completa, “Me desculpe por dizer isso, pensei que fosse algo mais bizarro”. Eu lhe digo que compreendo e completo: “Não há nada fora do normal. É só um corpo, como qualquer outro.” Me viro lentamente para terminar de me vestir.

Olhando pela janela, posso ver, sem ouvir, a força da tempestade. Eu a pergunto: “O que você recomenda para a dor lombar?”, calculando o ângulo de entrada dos meus pés em meus sapatos e movendo minha perna em câmera lenta. “Num geral, responde a osteopata, recomendo muito repouso, um pouco de exercício e uma cinta de contenção para as costas. E no seu caso, já que você é trans…” Eu a interrompo antes que termine a frase: “A mesma coisa, nem mais nem menos, descanso, fazer os exercícios e uma cinta de contenção para as costas.” Ela ri, “acho que sim”, diz. A dor lombar me impede de rir, mas minha alma ri silenciosamente. Esse é o corpo trans: um corpo como qualquer outro.

A conspiração dos losers, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/03/27/la-conjuration-des-losers_1783349

E se o vírus foi criado para que todos os losers [perdedores] do planeta pudessem ter de volta seus ex sem precisar viver com eles 24 horas por dia, numa espécie de nova realidade?

Fiquei doente em Paris na quarta-feira de 11 de março, antes do governo francês decretar o confinamento da população, e quando saí da cama, dia 19 de março, pouco mais de uma semana depois, o mundo tinha mudado. Quando fui para a cama, o mundo era próximo, coletivo, viscoso e sujo. Quando saí da cama ele tinha se tornado distante, individual, seco e higiênico. Durante a doença eu não pude avaliar o que estava acontecendo política ou economicamente, porque a febre e o desconforto tomaram minha energia vital. Ninguém é filósofo quando sua cabeça está explodindo. De vez em quando eu assistia às notícias, o que só me deixava mais desconfortável. A realidade era indistinguível do pesadelo, e as manchetes eram mais confusas que qualquer pesadelo causado por minhas alucinações febris. Durante dois dias inteiros decidi não abrir site algum como receita antiansiedade. É a isso e ao óleo essencial de orégano que atribuo minha cura. Eu não tive dificuldades para respirar, mas tive problemas em pensar que eu deveria continuar respirando. Eu não tive medo de morrer. Eu tive medo de morrer sozinho.

Entre a febre e a ansiedade, eu disse a mim mesmo que os parâmetros de organização do comportamento social tinham mudado para sempre e não podiam mais ser alterados. Senti essa evidência com tanta força que me perfurava o peito à medida que minha respiração se tornava mais fácil. Tudo tomaria para sempre essa nova forma. De agora em diante teríamos acesso a formas cada vez mais excessivas de consumo digital, mas nossos corpos, nossos organismos físicos, seriam privados de todo contato e vitalidade. A mutação tomaria a forma de uma cristalização da vida orgânica, de uma digitalização do trabalho e do consumo, de uma desmaterialização do desejo.

Aqueles que eram casados estavam agora condenados a viver confinados vinte e quatro horas por dia com a pessoa com quem se casaram, independentemente de a amar ou odiar, ou melhor, ambos ao mesmo tempo, o que, aliás, é o mais comum: o casal é governado por uma lei da física quântica segundo a qual não há oposição entre termos contrários, mas sim uma simultaneidade de fatos dialéticos. Nesta nova realidade, aqueles de nós que perderam o amor ou que não o encontraram a tempo, isto é, antes da grande mutação do Covid-19, foram condenados a passar o resto de suas vidas totalmente sozinhos. Nós sobreviveríamos, mas sem toque, sem pele. Aqueles que não ousaram dizer às pessoas que amavam que não podiam mais encontrá-las mesmo que pudessem expressar seu amor agora tinham que viver para sempre na expectativa impossível de um encontro físico que nunca aconteceria. Aqueles que escolheram viajar ficariam para sempre do outro lado da fronteira, e os burgueses que foram para a praia ou para o campo passar os dias de confinamento em suas agradáveis casas de férias (pobrezinhos!) nunca mais poderiam voltar à cidade. Suas casas seriam solicitadas para acomodar os desabrigados que, sim, ao contrário dos ricos, viveriam permanentemente na cidade. Tudo seria corrigido na nova e imprevisível forma que as coisas tinham tomado depois do vírus. O que parecia ser um confinamento temporário continuaria para o resto de nossas vidas. Talvez as coisas mudassem novamente, mas não para aqueles de nós com mais de 40 anos. Essa era a nova realidade. A vida após a grande mudança. Por isso, perguntei-me se valia a pena continuar vivendo assim.

A primeira coisa que fiz quando saí da cama depois de estar doente com o vírus por uma semana tão imensa e estranha quanto um novo continente foi me fazer esta pergunta: sob que condições e de que forma valeria a pena continuar vivendo? A segunda coisa, antes de encontrar uma resposta a esta pergunta, foi escrever uma carta de amor. De todas as teorias de conspiração que li, a que mais me atraiu é a que diz que o vírus foi criado por um laboratório para que todos os losers [perdedores] do planeta pudessem recuperar seus ex — sem realmente precisar voltar com eles.

Cheio do lirismo e angústia acumulados durante uma semana de doença, medos e dúvidas, a carta a minha ex não foi apenas uma declaração poética e desesperada de amor, mas sobretudo um documento vergonhoso para a pessoa que o assinou. Mas se as coisas não podiam mais mudar, se aqueles que estavam longe não podiam mais tocar uns aos outros, do que importava ser tão ridículo? Do que importava agora dizer à pessoa que você amava que você a amava, sabendo que provavelmente ela já o esqueceu ou substituiu, se você nunca mais poderia vê-la de qualquer jeito? O novo estado de coisas, na sua imobilidade escultural, deu um novo nível de what the fuck até ao seu próprio ridículo.

Escrevi essa linda e horrivelmente patética carta à mão, coloquei-a num envelope muito branco e escrevi nele, na minha melhor caligrafia, o nome e o endereço de minha ex. Me vesti, pus uma máscara, calcei as luvas e os sapatos que tinha deixado à porta e desci até a entrada do prédio. De lá, seguindo a regra do confinamento, eu não fui para a rua, mas sim para o lixo no pátio. Eu abri o balde de lixo amarelo e coloquei a carta para minha ex — em papel reciclável. Voltei lentamente para o meu apartamento. Deixei os meus sapatos à porta. Entrei, tirei as calças e as coloquei num saco plástico, tirei a máscara e a coloquei na varanda para arejá-la, tirei as luvas, as atirei para o lixo e lavei as mãos durante dois minutos intermináveis. Tudo, absolutamente tudo, foi fixado na nova forma que tinha surgido após a grande mutação. Voltei para o meu computador e abri o meu e-mail: e voilá, lá estava, uma mensagem de minha ex intitulada “Penso em você durante a crise do vírus”.

Aprendendo com o vírus, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html

A gestão política das epidemias põe em cena a utopia da comunidade e as fantasias imunitárias de uma sociedade ao externalizar os sonhos de onipotência de sua soberania política.

Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da AIDS e resistido até a invenção da triterapia [coquetel] teria hoje 93 anos: ele aceitaria de bom grado ficar fechado em seu apartamento na rue Vaugirard? O primeiro filósofo da história a morrer de complicações geradas pelo vírus da imunodeficiência adquirida nos deixou algumas das noções mais eficazes para pensar a gestão política da epidemia, que em meio ao pânico e à desinformação, se tornam tão úteis como uma boa máscara cognitiva.

A coisa mais importante que aprendemos com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (não há política que não seja uma política de corpos). Mas o corpo não é para Foucault um determinado organismo biológico dado sobre o qual o poder posteriormente age. A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, pô-lo a trabalhar, definir seus modos de reprodução, prefigurar os modos de discurso através dos quais esse corpo se ficcionaliza até ser capaz de dizer “eu”. Todo o trabalho de Foucault pode ser entendido como uma análise histórica das diferentes técnicas através das quais o poder gere a vida e a morte das populações. Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou Vigiar e punir e o primeiro volume da História da sexualidade, Foucault usou a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o poder estabeleceu com o corpo social na modernidade. Ele descreveu a transição do que chamou de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinar” como a passagem de uma sociedade que define a soberania em termos de tomada de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gere e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas espalharam-se como uma teia de poder que foi para além da esfera legal ou punitiva para se tornar uma força “somatopolítica”, uma forma de poder espacializado que se estendeu por todo o território até penetrar no corpo individual.

Durante e após a crise da AIDS diversos autores expandiram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e suas relações com as políticas imunitárias. O filósofo italiano Roberto Esposito analisou as relações entre a noção política de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”. Comunidade e imunidade compartilham uma raiz comum, munus, em latim o munus era o imposto que alguém deveria pagar por viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é cum (con) munus (dever, lei, obrigação, mas também oferta): um grupo humano que está ligado por uma lei e uma obrigação comuns, mas também por um dom, por uma oferta. O substantivo inmunitas é uma palavra privativa que deriva da negação do munus. No direito romano, a inmunitas era uma dispensa ou um privilégio que liberava alguém de deveres societários comuns a todos. Aquele que tinha sido liberado era imune. Enquanto desmunido era aquele de quem se tinha retirado todos os privilégios da vida comunitária.

Roberto Esposito nos ensina que toda biopolítica é imunológica: implica uma definição de comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre aqueles corpos que estão isentos de impostos (aqueles que são considerados imunes) e aqueles que a comunidade percebe como potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos em um ato de proteção imunológica. Esse é o paradoxo da biopolítica: todo ato de proteção implica uma definição imunitária da comunidade segundo a qual esta dará a si mesma a autoridade de sacrificar outras vidas em benefício de uma ideia de sua própria soberania. O estado de exceção é a normalização deste paradoxo insuportável.

A partir do século XIX, com a descoberta da primeira vacina contra a varíola e as experiências de Pasteur e Koch, a noção de imunidade saiu do âmbito do direito e adquiriu significado médico. As democracias europeias liberais e patriarcais do século XIX construíram o ideal do indivíduo moderno não só como um agente (masculino, branco, heterossexual) econômico livre, mas também como um corpo imune, radicalmente separado, que não deve nada à comunidade. Para Esposito, a forma como a Alemanha nazista caracterizou parte de sua própria população (os judeus, mas também os ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência) como corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos da gestão imunitária. Este entendimento imunológico da sociedade não terminou com o nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na Europa legitimando as políticas neoliberais de gestão de suas minorias racializadas e das populações migrantes. Foi este entendimento imunológico que forjou a comunidade econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da Frontex nos últimos anos.

Em 1994, em Flexible Bodies, a antropóloga da Universidade de Princeton Emily Martin analisou a relação entre imunidade e política na cultura americana durante as crises da poliomielite e da AIDS. Martin chegou a algumas conclusões que são pertinentes para analisar a crise atual. A imunidade corporal, argumenta Martin, não é apenas um mero fato biológico independente de variáveis culturais e políticas. Pelo contrário, o que entendemos por imunidade é construído coletivamente através de critérios sociais e políticos que produzem alternativamente soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.

Se repensarmos a história de algumas das epidemias mundiais dos últimos cinco séculos através do prisma oferecido por Michel Foucault, Roberto Esposito e Emily Martin, é possível elaborar uma hipótese que poderia tomar a forma de uma equação: diga-me como sua comunidade constrói sua soberania política e eu lhe direi que formas suas epidemias tomarão e como você lidará com elas.

As diferentes epidemias materializam no âmbito do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações num determinado período. Para colocar nos termos de Foucault, uma epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas aplicadas ao território nacional para o nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma epidemia torna possível estender a toda a população as medidas políticas de “imunização” que até então tinham sido aplicadas violentamente àqueles considerados “estrangeiros” tanto dentro como fora das fronteiras do território nacional.

A gestão política das epidemias põe em cena a utopia da comunidade e as fantasias imunitárias de uma sociedade ao externalizar os sonhos de onipotência (e os estrondosos fracassos) de sua soberania política. A hipótese de Michel Foucault, Roberto Esposito e Emily Martin nada tem a ver com uma teoria da conspiração. Não se trata da ridícula ideia de que o vírus é uma invenção de laboratório ou um plano maquiavélico para difundir políticas ainda mais autoritárias. Pelo contrário, o vírus atua em nossa imagem e semelhança, não faz mais que reproduzir, materializar, intensificar e estender a toda a população as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já operavam no território nacional e seus limites. Assim, cada sociedade pode definir-se pela epidemia que a ameaça e pela forma como se organiza em face dela.

Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu pela primeira vez a cidade de Nápoles em 1494. A empreitada colonial europeia tinha acabado de começar. A sífilis foi como o pontapé inicial da destruição colonial e as políticas raciais que viriam com ela. Os ingleses a chamavam “a doença francesa”, os franceses diziam que era “a doença napolitana” e os napolitanos diziam que ela tinha vindo da América: dizia-se que ela tinha sido trazida pelos colonizadores infectados pelos índios… O vírus, como nos ensinou Derrida, é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estranho. Infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI a XIX as formas de repressão e exclusão social que dominaram a modernidade patriarcal-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição dos chamados “casamentos mistos” entre pessoas de diferentes classes e “raças” e as múltiplas restrições às relações sexuais e extraconjugais.

A utopia de comunidade e o modelo de imunidade à sífilis é a do corpo branco burguês sexualmente confinado à vida matrimonial como núcleo de reprodução do corpo nacional. Assim, a prostituta tornou-se o corpo vivo que condensou todos os significantes políticos abjetos durante a epidemia: mulher trabalhadora e muitas vezes racializada, corpo fora das regulações do lar e do casamento, que fez de sua sexualidade o seu meio de produção, a trabalhadora do sexo tornou-se visível, controlada e estigmatizada como o principal vetor de propagação do vírus. Mas não foi a repressão da prostituição ou o confinamento de prostitutas em bordéis nacionais (como Restif de la Bretonne imaginava) que curou a sífilis. Pelo contrário. O confinamento das prostitutas só as tornava mais vulneráveis à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta dos antibióticos e, especialmente, da penicilina em 1928, precisamente um momento de profundas transformações da política sexual na Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras descriminalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética do casamento heterossexual.

Meio século depois, a AIDS foi para a sociedade neoliberal heteronormativa do século XX o que a sífilis tinha sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos surgiram em 1981, precisamente no momento em que a homossexualidade deixava de ser considerada uma doença psiquiátrica, depois de ter sido objeto de perseguição e discriminação social durante décadas. A primeira fase da epidemia afetou principalmente os então chamados 4 H: homossexuais, prostitutas [hookers] -trabalhadoras ou trabalhadores sexuais-, hemofílicos e usuários de heroína -heroinômanos-. A AIDS remasterizou e reatualizou a teia de controle sobre o corpo e a sexualidade que a sífilis tinha tecido e que a penicilina, a descolonização, movimentos feministas e homossexuais tinham desmantelado e transformado nas décadas de sessenta e setenta. Como no caso das prostitutas na crise da sífilis, a repressão da homossexualidade só causou mais mortes. O que vem progressivamente transformando a AIDS em uma doença crônica é a despatologização da homossexualidade, a autonomia farmacológica do Sul, a emancipação sexual das mulheres, seu direito de dizer não a práticas sem preservativos e o acesso da população afetada, independentemente de sua classe social ou grau de racialização, às triterapias. O modelo comunidade/imunidade da AIDS tem a ver com a fantasia da soberania sexual masculina entendida como o direito inegociável de penetração, enquanto todo o corpo sexualmente penetrado (homossexual, mulher, toda forma de analidade) é percebido como desprovido de soberania.

Voltemos agora a nossa situação atual. Muito antes do aparecimento do Covid-19 já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Já estávamos passando, antes do vírus, por uma mudança social e política tão profunda quanto a que afetou as sociedades que sofreram a sífilis. No século XV, com a invenção da prensa e a expansão do capitalismo colonial, se passou de uma sociedade oral para uma sociedade escrita, de uma produção feudal para uma forma de produção industrial-escravagista e de uma sociedade teocrática para uma sociedade regida por acordos científicos em que as noções de sexo, raça e sexualidade se tornariam dispositivos de controle necro-biopolítico da população.

Hoje estamos passando de uma sociedade escrita para uma sociedade ciber-oral, de uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico para formas de controle microprostéticas e midiático-cibernéticas. Em outros textos chamei de farmacopornografia o tipo de gestão e produção do corpo e da subjetividade sexual dentro desta nova configuração política. O corpo e a subjetividade contemporâneos já não são regulados apenas por sua passagem por instituições disciplinares (escola, fábrica, quartel, hospital, etc.), mas sobretudo por um conjunto de tecnologias biomoleculares, microprostéticas, digitais, de transmissão e de informação. No âmbito da sexualidade, a modificação farmacológica da consciência e do comportamento, a globalização da pílula contraceptiva para todas as “mulheres”, assim como a produção de triterapias, de terapias preventivas para a AIDS e o viagra são alguns dos indicadores da gestão biotecnológica. A extensão global da Internet, a generalização do uso de tecnologias informáticas móveis, o uso de inteligência artificial e de algoritmos na análise de big data, o intercâmbio de informação em alta velocidade e o desenvolvimento de dispositivos de vigilância global por satélite são indicadores desta nova gestão semiótico-técnica digital. Se lhes chamei pornográficos é, em primeiro lugar, porque estas técnicas de biovigilância são introduzidas no corpo, atravessam a pele, nos penetram; e em segundo lugar, porque os dispositivos de biocontrole já não funcionam pela da repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas pela incitação ao consumo e à produção constante de um prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e mais saudáveis estamos, melhor somos controlados.

A mutação que está ocorrendo poderia ser também a passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista, de uma sociedade antropocêntrica e de uma política onde uma parte muito pequena da comunidade humana planetária autoriza a si mesma a realizar práticas de predação universal, para uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma sociedade de energias fósseis para uma outra, de energias renováveis. Está também em questão a passagem de um modelo binário de diferença sexual para um paradigma mais aberto em que a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva de um corpo não definem sua posição social a partir do momento do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal para formas não hierárquicas de reprodução da vida. O que estará no centro do debate durante e depois desta crise é quais vidas estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas. É no contexto desta mutação, da transformação das formas de entender a comunidade (uma comunidade que hoje é a totalidade do planeta) e a imunidade, que o vírus opera e se torna uma estratégia política.

Imunidade e política da fronteira

O que caracterizou as políticas governamentais nos últimos 20 anos, desde pelo menos a queda das torres gêmeas, diante das aparentes ideias de liberdade de movimento que dominaram o neoliberalismo da era Thatcher, foi a redefinição dos estados-nação em termos neocoloniais e identitários e o retorno à ideia da fronteira física como condição de restauração da identidade nacional e da soberania política. Israel, Estados Unidos, Rússia, Turquia e a Comunidade Econômica Europeia lideraram o desenho de novas fronteiras que, pela primeira vez em décadas, não só foram vigiadas ou guardadas, mas também restabelecidas pela decisão de levantar muros e construir diques, e defendidas com medidas que não são biopolíticas, mas necropolíticas, com técnicas de morte.

Como sociedade europeia, decidimos nos construir coletivamente como uma comunidade totalmente imune, fechada ao Leste e ao Sul, enquanto o Leste e o Sul, do ponto de vista dos recursos energéticos e da produção de bens de consumo, são nosso armazém. Fechamos a fronteira na Grécia, construímos os maiores centros de detenção a céu aberto da história nas ilhas próximas à Turquia e ao Mediterrâneo e imaginamos que assim conseguiríamos uma forma de imunidade. A destruição da Europa começou paradoxalmente com essa construção de uma comunidade europeia imune, aberta em seu interior e totalmente fechada aos estrangeiros e migrantes.

O que está sendo testado em escala planetária pela gestão do vírus é uma nova forma de entender a soberania em um contexto onde a identidade sexual e racial (eixos da segmentação política do mundo patriarcal-colonial até agora) está sendo desarticulada. O Covid-19 deslocou as políticas de fronteira que ocorriam no território nacional ou no superterritório europeu para o nível do corpo individual. O corpo, seu corpo individual, como espaço vivo e como tessitura de poder, como centro de produção e consumo de energia, se tornou o novo território em que as políticas agressivas de fronteira que temos desenvolvido e testado há anos se expressam agora sob a forma de barreira e guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica se deslocou das costas da Grécia para a porta do domicílio privado. Lesbos agora começa na porta de sua casa. E a fronteira não para de te cercar, se empurra até se aproximar cada vez mais de seu corpo. Calais agora explode na sua cara. A nova fronteira é a máscara. O ar que respira deve ser só seu. A nova fronteira é sua epiderme. A nova Lampedusa é sua pele.

Se reproduzem agora sobre os corpos individuais as políticas da fronteira e as medidas rigorosas de confinamento e imobilização que, como comunidade, temos aplicado nos últimos anos a migrantes e refugiados -a ponto de deixá-los fora de qualquer comunidade-. Durante anos os deixamos no limbo dos centros de detenção. Agora somos nós que vivemos no limbo do centro de detenção de nossas próprias casas.

A biopolítica na era ‘farmacopornográfica’

As epidemias, por seu apelo ao estado de exceção e pela imposição inflexível de medidas extremas, são também grandes laboratórios de inovação social, ocasião para uma reconfiguração em larga escala das técnicas do corpo e das tecnologias do poder. Foucault analisou a passagem da gestão da lepra para a gestão da praga como o processo através do qual as técnicas disciplinares de espacialização do poder da modernidade foram implantadas. Se a lepra tivesse sido enfrentada com medidas estritamente necropolíticas que excluíssem o leproso, condenando-o, se não à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a reação à epidemia de peste inventou a gestão disciplinar e suas formas de inclusão excludente: estrita segmentação da cidade, confinamento de cada corpo em cada casa.

As diferentes estratégias que os diferentes países adotaram em resposta à disseminação do Covid-19 mostram dois tipos totalmente diferentes de tecnologias biopolíticas. A primeira, em funcionamento principalmente na Itália, Espanha e França, aplica medidas estritamente disciplinares que não são, em muitos aspectos, muito diferentes daquelas utilizadas contra a peste. É o confinamento domiciliar de toda a população. Vale a pena reler o capítulo sobre a gestão da peste na Europa em Vigiar e punir para perceber que as políticas francesas de gestão do Covid-19 não mudaram muito desde então. Aqui funciona a lógica da fronteira arquitetônica e o tratamento de casos de infecção dentro dos enclaves hospitalares clássicos. Esta técnica ainda não mostrou provas de eficácia total.

A segunda estratégia, implementada pela Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Hong Kong, Japão e Israel, envolve passar das modernas técnicas disciplinares e de controle arquitetônico para as técnicas farmacopornográficas de biovigilância: aqui a ênfase está na detecção individual do vírus pela multiplicação dos testes e da vigilância digital constante e rigorosa dos pacientes através dos seus dispositivos informáticos móveis. Os celulares e os cartões de crédito se convertem em instrumentos de vigilância que permitem traçar os movimentos do corpo individual. Não precisamos de pulseiras biométricas: o celular se tornou a melhor pulseira, ninguém o deixa nem para dormir. Uma aplicação GPS informa a polícia sobre os movimentos de qualquer corpo suspeito. A temperatura e o movimento de um corpo individual são monitorados através de tecnologias móveis e observados em tempo real pelo olhar digital de um Estado ciber-autoritário para o qual a comunidade é uma comunidade de ciber-usuários e a soberania é, acima de tudo, transparência digital e gestão de big data.

Mas essas políticas de imunização política não são novas e não foram implantadas antes apenas para a busca e captura dos chamados terroristas: desde o início da década de 2010, por exemplo, Taiwan legalizou o acesso a todos os contatos de celulares em aplicações de encontros sexuais a fim de “prevenir” a disseminação da AIDS e da prostituição na Internet. O Covid-19 legitimou e ampliou essas práticas estatais de biovigilância e controle digital as padronizando e tornando “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No entanto, os mesmos Estados que estão implementando medidas de vigilância digital extrema ainda não estão considerando a proibição do tráfico e consumo de animais selvagens, ou a produção industrial de aves e mamíferos, ou a redução das emissões de CO2. O que tem aumentado não é a imunidade do corpo social, mas a tolerância dos cidadãos ao controle cibernético estatal e empresarial.

A gestão política do Covid-19 como forma de administração da vida e da morte desenha os contornos de uma nova subjetividade. O que terá sido inventado após a crise é uma nova utopia de comunidade imune e uma nova forma de controle do corpo. O sujeito do tecnopatriarcado neoliberal que o Covid-19 fabrica não tem pele, é intocável, não tem mãos. Não troca bens físicos, nem toca em moedas, paga com cartões de crédito. Não tem lábios, não tem língua. Não fala ao vivo, deixa uma mensagem de voz. Não se encontra nem se coletiviza. É radicalmente indivíduo. Não tem rosto, tem máscara. Seu corpo orgânico se oculta para poder existir por trás de uma série indefinida de mediações semio-técnicas, uma série de próteses cibernéticas que lhe servem de máscara: a máscara do endereço de e-mail, a máscara da conta do Facebook, a máscara do Instagram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta bancária, uma porta com um nome, um endereço para o qual a Amazon pode enviar seus pedidos.

A prisão suave: bem-vindo à telerrepública de sua casa

Uma das mudanças centrais das técnicas biopolíticas farmacopornográficas que caracterizam a crise do Covid-19 é que o lar — e não as instituições tradicionais de confinamento e padronização (hospital, fábrica, prisão, escola) — aparece agora como o novo centro de produção, consumo e controle biopolítico. Já não se trata apenas de a casa ser o local de isolamento do corpo, como era o caso na gestão da peste. O lar se tornou agora o centro da economia do teleconsumo e da teleprodução. O espaço doméstico existe agora como um ponto em um espaço ciber-vigiado, um lugar identificável num mapa do google, uma caixa reconhecível por um drone.

Se eu me interessei pela Mansão Playboy na época foi porque ela funcionava no meio da Guerra Fria como um laboratório no qual estavam sendo inventados novos dispositivos de controle farmacopornográfico do corpo e da sexualidade, que seriam estendidos a partir do início do século 21 e que agora estão sendo estendidos a toda a população mundial com a crise do Covid-19. Quando fiz minha pesquisa sobre a Playboy fiquei impressionado com o fato de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter passado quase 40 anos sem sair da Mansão, vestindo apenas pijama, roupão e pantufas, bebendo coca-cola e comendo Butterfingers, e que ele teria dirigido e produzido a revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de casa ou mesmo de sua cama. Complementada com uma câmera de vídeo, uma linha telefônica, rádio e música ambiente, a cama de Hefner era uma verdadeira plataforma de produção multimídia da vida de seu morador.

O biógrafo Steven Watts chamou Hefner de “um recluso voluntário no seu próprio paraíso”. Adepto de dispositivos de arquivo audiovisual de todo tipo, Hefner, muito antes de existir o celular, Facebook ou WhatsApp, enviava mais de vinte fitas de áudio e vídeo com dicas e mensagens que iam desde entrevistas ao vivo a diretrizes de publicação. Hefner tinha instalado na mansão, em que viviam também uma dezena de Playmates, um circuito fechado de câmeras, e podia acessar todos os cômodos em tempo real a partir de seu centro de controle. Coberta com painéis de madeira e cortinas grossas, mas penetrada por milhares de cabos e preenchida com o que na época era percebido como as mais altas tecnologias de telecomunicação (e que hoje nos parece arcaico como um tam-tam), [a mansão] era ao mesmo tempo totalmente opaca e totalmente transparente. O material filmado pelas câmeras de vigilância também ia parar nas páginas da revista.

A revolução biopolítica silenciosa que a Playboy conduziu significou, além da transformação da pornografia heterossexual em cultura de massa, o questionamento da divisão que tinha fundado a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a diferença entre a fábrica e o lar e com ela a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade. A Playboy abordou essa diferença propondo a criação de um novo enclave de vida: o apartamento de solteiro totalmente ligado às novas tecnologias de comunicação do qual o novo produtor semiótico não precisa sair nem para trabalhar nem para fazer sexo -atividades que, além do mais, tinham se tornado indistinguíveis-. Sua cama giratória era ao mesmo tempo sua mesa de trabalho, um escritório de direção, um cenário fotográfico e um lugar para encontros sexuais, assim como um aparelho de televisão do qual foi filmado o famoso programa Playboy after dark. A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre teletrabalho e a produção imaterial que a gestão da crise do Covid-19 transformou em dever do cidadão. Hefner chamou este novo produtor social de “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a Playboy colocou em marcha foi a erosão (se não a destruição) da distância entre o trabalho e o lazer, entre a produção e o sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e transmitida pelos meios de comunicação da revista e da televisão, era totalmente pública, mesmo que o playboy não deixasse sua casa ou mesmo sua cama. Nesse sentido, a Playboy também questionou a diferença entre as esferas masculina e feminina, tornando o novo operário multimídia, o que na época parecia um oximoro, num homem doméstico. O biógrafo de Hefner nos lembra que esse isolamento produtivo precisava de um suporte químico: Hefner era um grande consumidor de Dexedrina, uma anfetamina que eliminava o cansaço e o sono. Então, paradoxalmente, o homem que não saía da cama nunca dormia. A cama como novo centro de operações multimídia era uma célula farmacopornográfica: só podia funcionar com a pílula contraceptiva, drogas que mantinham o nível de produção elevado e um fluxo constante de códigos semióticos que se tornaram o único alimento verdadeiro que sustentava o playboy.

Tudo isso lhe parece familiar agora? Tudo isso parece muito estranhamente suas próprias vidas confinadas? Recordemos agora os slogans do presidente francês Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saiam de casa e teletrabalhem. As medidas biopolíticas de gestão de contágio impostas em face do coronavírus fizeram de cada um de nós um trabalhador horizontal mais ou menos playboyesco. O espaço doméstico de qualquer um de nós é hoje dez mil vezes mais avançado tecnologicamente que a cama giratória de Hefner era em 1968. Os dispositivos de teletrabalho e telecontrole estão agora na palma das nossas mãos.

Em Vigiar e punir, Michel Foucault analisou as células religiosas de confinamento unipessoal como autênticos vetores que serviram para modelar a passagem das técnicas soberanas e sangrentas de controle do corpo e da subjetividade anteriores ao século XVIII para as arquiteturas disciplinares e os dispositivos de confinamento como novas técnicas de gestão da totalidade da população. As arquiteturas disciplinares eram versões secularizadas das células monásticas nas quais o indivíduo moderno se desenvolveu pela primeira vez como uma alma encerrada num corpo, um espírito de leitura capaz de ler as instruções do Estado. Quando o escritor Tom Wolfe visitou Hefner, ele disse que ele [Hefner] vivia numa prisão tão suave quanto o coração de uma alcachofra. Poderíamos dizer que a Mansão Playboy e a cama giratória de Hefner, convertidos em objeto de consumo pop, funcionaram durante a Guerra Fria como espaços de transição nos quais foram inventados o novo sujeito prostético, ultraconectado, e as novas formas de consumo e controle farmacopornográficas e de biovigilância que dominam a sociedade contemporânea. Esta mutação foi ampliada e amplificada durante a gestão da crise do Covid-19: nossas máquinas portáteis de telecomunicação são os nossos novos carcereiros e os nossos interiores domésticos se tornaram a prisão suave e ultraconectada do futuro.

Mutação ou submissão

Mas tudo isto pode ser uma má notícia ou uma grande oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são os novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as novas células de biovigilância que se torna mais urgente do que nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e de resistência e pôr em marcha novos processos antagônicos.

Ao contrário do que se poderia imaginar, a nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou da separação, mas de uma nova compreensão da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta. Precisamos de um parlamento planetário dos corpos, um parlamento não definido em termos de política de identidade nem de nacionalidades, um parlamento de corpos vivos (vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O acontecimento Covid-19 e suas consequências nos chamam a nos libertar de uma vez por todas da violência com a qual definimos nossa imunidade social. A cura e a recuperação não podem ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social, de fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem surgir de um processo de transformação política. Curar-nos como sociedade significaria inventar uma nova comunidade para além da política de identidade e da fronteira com a qual temos produzido até agora a soberania, mas também para além da redução da vida a sua biovigilância cibernética. Seguir com vida, nos mantermos vivos como planeta, face ao vírus, mas também face ao que pode acontecer, significa pôr em marcha formas estruturais de cooperação planetária. Como o vírus se modifica, se quisermos resistir à submissão também temos de sofrer uma mutação.

É necessário passar de uma mutação forçada para uma mutação deliberada. Devemos nos reapropriar criticamente das técnicas biopolíticas e de seus dispositivos farmacopornográficos. Em primeiro lugar, é imperativo mudar a relação do nosso corpo com as máquinas de biovigilância e biocontrole: elas não são simples dispositivos de comunicação. Temos de aprender coletivamente como alterá-los. Mas também devemos ficar desalinhados. Os Governos estão pedindo o confinamento e o teletrabalho. Sabemos que eles clamam por descoletivização e telecontrole. Usemos o tempo e a força do confinamento para estudar as tradições de luta e resistência das minorias que nos têm ajudado a sobreviver até agora. Desliguemos os celulares, desconectemos a Internet. Façamos o grande blackout face aos satélites que estão nos observando e imaginemos juntos a revolução que vem.

O doente digital, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/chroniques/2020/04/10/le-malade-numerique_1784910

Ele estava deitado em sua cama, rodeado de livros abertos que não conseguia mais ler. Ele tentou agarrar algo para beber com o braço, mas nem Saidiya Hartman nem Kathy Acker eram líquidos. A febre o impossibilitou de diferenciar os livros das bebidas. Ele jurava que poderia beber os livros e ler a água. Dentro de seu corpo, o diafragma havia se tornado uma fronteira que limitava a quantidade de ar que entrava e saía de seus pulmões. Os músculos pareciam dizer: “Deixem passar apenas o ar nacional-neoliberal”. A respiração se tornou mais e mais identitária e curta.

O telefone estava ao seu lado como um ser vivo, totalmente ativo em sua aparente quietude. O que de fora parecia um pacote estreito de plástico e alumínio coberto com vidro atrás do qual se moviam quadrados coloridos, era na realidade um animal de estimação que percorria distâncias infinitas em poucos infra-segundos e lhe trazia em sua cama as mais horríveis notícias dos lugares mais remotos da Terra, mas também mensagens de pessoas que ele amava. Em outro momento, antes do vírus, este animal era chamado de “móvel” porque podia acompanhar o seu dono em qualquer lugar. Depois do vírus, o celular ficou tão imóvel quanto seu dono, mas tão fiel, tão perverso quanto ele. Era difícil, em meio à doença e ao isolamento, não se apegar ao animal. Em confinamento total, ligar o animal digital para que ele pudesse tomar sua dose diária de eletricidade era a ação mais importante de que a pessoa doente não podia esquecer. Esta criatura técnica consumia 95 quilos de CO2, muito mais do que qualquer outro animal vivo na era pré-cibernética. Pelo menos, ele pensou, era possível acariciar animal digital.

O doente tinha se descoberto beijando o copo desta caixa, sussurrando diminutivos para ela. Mas o animal digital não era apenas um tecnoxamã ventríloquo que podia falar com as vozes de todos os outros. Era um vigilante inorgânico a serviço do poder, que virou sua câmera e microfone para seu próprio usuário e enviou todas as informações armazenadas para bancos de dados.

O telefone ao vivo era mais sofisticado que os camaleões eletrônicos. Às vezes a caixa brilhante refletia o rosto de um amigo em seu copo, falava com sua voz, em outras era transfigurada e se tornava o rosto de um médico que lhe dava conselhos sobre como lidar com o ataque do vírus, outras vezes se tornava uma tábua leve da lei anunciando as últimas medidas do governo para lidar com a crise. Na caixa metálica todos os dias surgem novos aplicativos, como novos órgãos. O paciente tocou o aplicativo StopCovid com seu dedo indicador. A partir de agora, seu animal digital enviará sua temperatura e posição física diretamente para o Ministério da Saúde. Em caso de morte, o telefone se tornaria um dispositivo forense: era uma caixa preta, ele sabia tudo sobre o paciente. Seu telefone, prótese, arquivo e extensão eletrônica do seu usuário, depois de sua morte, seria seu último órgão externo a ser desligado.

Mas esse ser cibernético ágil e benevolente era de fato o filho do Mercado e do Complexo industrial militar, criatura criada nas fábricas do capitalismo tecnopatriarcal que havia sido alimentada diretamente com os raros materiais extraídos das minas da república democrática do Congo. O coração do Congo havia sido aberto, partido, e do seu seio haviam sido extraídos os nutrientes que permitiriam que o corpo vivo se recompusesse a partir do telefone. Assim como um bebê se alimenta de leite, o telefone digital é feito de tungstênio, estanho, tântalo, lítio, cobalto, níquel, arsênico, mercúrio e terras raras. Dizem que o animal digital é feito de “minerais sanguíneos” porque, para obter os componentes que o animam, é necessário um processo de exploração, extração e violência. Assim, para fazer este Frankeinstein de bolso foi necessária uma dose de sangue humano. O paciente notou que o mesmo sangue, o mesmo crime, fluía por suas veias e pelos chips eletrônicos de seu telefone. Ele sentiu uma nova forma de fraternidade eletrônica nojenta. Ele se sentiu pela primeira vez inorganicamente vivo. E organicamente morto. Soubemos que ele também, como seu telefone, era um filho das entranhas da África. Ele sabia que tinha vivido devorando todos os outros seres do planeta. Ele tinha sido um Africanívoro, um Sulamericanívoro, um Indianívoro, um Chinívoro… Terrívoro… ele tinha devorado tudo, e agora tudo o que ele tinha ingerido estava explodindo em seu pequeno cérebro branco europeu.

Ele se levantou e foi ao banheiro para vomitar. Ele colocou sua cabeça quente debaixo da torneira. A água bateu em seu crânio. Ele estava com frio e, logo depois, ou talvez ao mesmo tempo, um fogo se espalhou de seu peito até a testa que a água não conseguia acalmar. Ele levantou sua cabeça ainda molhada e se olhou no espelho. Então ele pensou ter visto que tinha um olho pendurado. Mais precisamente, ele olhou para seu olho direito como se seu olho esquerdo estivesse pendurado no osso supraorbital. Ele achava que a última etapa viral do capitalismo patriarcal-colonial era esta: a consciência como delírio digital. Ele se aproximou ainda mais do espelho e olhou para o fundo do osso orbital, o espaço deixado pelo globo ocular, e viu que havia, dentro de seu crânio, uma civilização imensa e minúscula. Ele viu centenas de corpos andando, pulando, brincando. Nem heterossexual nem homossexual, homem ou mulher, negro ou branco, animal ou humano. Ele entendeu que esta era uma sociedade governada por leis inteiramente novas. Ele pegou o olho e o colocou de volta em sua cavidade. Mas quando se deitou na cama não era mais o mesmo: agora sabia que por trás do que sempre viu, havia, invisível, uma outra vida.

As palavras que eu não posso lhes dizer, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/04/24/les-mots-que-je-ne-peux-pas-vous-dire_1786358

Neste período de confinamento, além do encontro diário que o filósofo organiza por vídeo com seus pais, restaria dedicar-lhes um livro suavizado de todas as palavras da linguagem de gênero e sexualidade. Um trabalho necessariamente heroico.

 

Durante o confinamento, em tempos de coronavírus, entre a desordem do tempo e a reorganização das tarefas diárias causada pela paralisação geral, adquiri um novo hábito. Todos os dias às 20h30, depois de sair na varanda para aplaudir ou gritar, atendo à chamada de vídeo dos meus pais. Eles estão em uma cidade no norte de Castela, e eu em um bairro de Paris. Antes do coronavírus, falávamos a cada dois meses, por ocasião de eventos importantes, festas, aniversários. Mas agora a chamada diária se tornou uma bomba de oxigênio. É o que minha mãe, que sempre teve talento para o melodrama, diz assim que a tela se abre: “Ver você é como sair e respirar”.

Meu pai tem 90 anos, é um homem dinâmico que antes de ser preso andava 8 quilômetros por dia. É também um homem frio: uma criança abandonada pelo próprio pai, que cresceu sem afeto, convencido de que o trabalho era sua única razão de existir. Embora os mais velhos não estejam autorizados a sair, meu pai desce todos os dias para comprar uma baguete a 200 metros da casa, usando suas luvas e máscara. “Ninguém pode lhe negar isso”, diz minha mãe. E ela acrescenta, quando ele se afasta: “Talvez nunca mais possamos caminhar juntos nas ruas. Esta pode ser a sua última primavera. Ele tem de poder sair”.

Minha mãe se dirige a mim às vezes no masculino e às vezes no feminino, mas ela sempre me chama de Paul. Eu gosto quando meu pai pergunta: “Quem está ligando?” e minha mãe diz: “É nossa Pol”. Ela acha que se escreve assim. Toda vez que eu ligo, meu pai inspeciona meu rosto na tela como se fosse para examinar as mudanças produzidas pela minha transição de gênero. Mas também como se ele estivesse procurando a cara dele na minha: “Você se parece cada vez mais com seu pai”, diz minha mãe. A transição destacou a semelhança dos nossos traços, como se trouxesse à tona um fenótipo que o estrogênio havia empurrado para o reino do invisível. Eu não lhe digo, mas esta nova semelhança é tão perturbadora para mim quanto é para ele.

Outro dia meu pai me perguntou: “Por que você não deixa a barba crescer no rosto todo?” “Porque ela não cresce de maneira uniforme”, expliquei. “Comecei a tomar testosterona aos 38 anos, e quando os poros da pele estão fechados, o cabelo não consegue crescer”. “Que mau negócio! Comprou gato por lebre”, respondeu ele. “Deixe-o em paz, não mexa com sua barba. Ele falou da sua?”, retrucou minha mãe. Quando lhes falo que estou corrigindo as provas de um novo livro que sai em junho, minha mãe me pergunta, com um interesse que revela seu desejo, a quem vou dedicá-lo. “A Judith Butler.” “Quem é esta senhora?” Explico-lhe que elu (1) não é uma senhora, que é uma pessoa que não se identifica nem como homem nem como mulher, e que acabou de obter seu certificado como pessoa não binária na Califórnia. E que isso é um acontecimento, como quando eu consegui minha mudança de sexo legal em 2017. Explico-lhes que elu é o/a filósofo através de quem eu soube que mesmo aqueles de nós considerados desviantes ou degenerados poderiam fazer filosofia. “Mas se não é um homem ou uma mulher”, pergunta-me meu pai, “o que é?”. “É Livre”, eu lhe digo. “Que mau negócio! Comprou gato por lebre”, repete ele. Nós três rimos. Antes de desligar, meu pai, que nunca disse que me amava, chegou muito perto da tela e me deu um beijo. Eu não soube como reagir ao seu gesto inesperado. “Esperamos por você amanhã”, diz minha mãe, “para nosso passeio juntos”.

Após o último encontro com eles, ouvindo o pedido implícito de minha mãe e vendo-os tão frágeis e de repente tão carinhosos, pensei que um dia gostaria de dedicar um livro a eles. E então me ocorreu que para que eles pudessem desfrutar dessa dedicatória sem se ofenderem com o conteúdo, eu precisaria ser capaz de escrever um livro no qual as palavras homossexual e homossexualidade, as palavras transexual, transgênero e transexualidade, ou a palavra sexo não aparecessem, nem sexualidade, nem estupro, nem trabalhadoras sexuais, nem prostituição, nem aborto, nem penetração, nem dildo, nem ânus, nem ereção, nem pênis, nem pau, nem vagina, nem vulva, nem clítoris, nem tetas, nem mamilos, nem foda, nem ejaculação, nem aids, nem orgasmo, nem boquete, nem sodomia, nem masturbação, nem perversão, nem bicha, nem lésbica, nem lesbianismo, nem sapatona, nem gay, nem bofinho, caminhoneira, nem puta, nem mastectomia, nem faloplastia, nem doença mental, nem disforia de gênero, nem psicose, nem esquizofrenia, nem depressão, nem pornografia, nem farmacopornografia, nem merda, nem vício, nem drogas, nem toxicomania, nem alcoolismo, nem maconha, nem heroína, nem cocaína, nem metadona, nem morfina, nem crack, nem dealer, nem suicídio, nem prisão, nem criminoso… E eu acho que o próprio exercício de escrita seria heroico. O livro seria uma longa perífrase barthesiana, mas também uma boa distração em tempos de confinamento.

(1) Pronome sem gênero. [NT: ‘iel’, em francês, é um pronome-neologismo, assim como “elu” em português]

Estávamos prestes a fazer a revolução feminista… e então chegou o vírus, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://bulb.liberation.fr/edition/numero-2/nous-etions-sur-le-point-de-faire-la-revolution-feministe/

Há apenas quarenta dias, estávamos à beira de um levante transfeminista descolonial que foi interrompido pela crise da Covid-19. O mundo capitalista parou, deixando-nos uma oportunidade formidável de metamorfose política e social tal como ensina o xamanismo ameríndio.

Não seria fácil dizer como ela começou, não podemos localizar o início da revolução, depois da primeira hashtag MeToo, ou quando uma centena de trabalhadoras sexuais ocupou a igreja Saint-Nizier em Lyon em 1975, ou quando a feminista negra Sojourner Truth se levantou na convenção das mulheres brancas em Akron, Ohio, em 1851, e gritou um retumbante “Não sou uma mulher?”, defendendo pela primeira vez na história a liberdade e o sufrágio das mulheres racializadas. Pode ter sido um pouco antes, ou um pouco mais tarde. Depende se você olha as coisas de uma perspectiva individual ou cósmica, nacional ou planetária, e se você se sente ou não parte de uma história de resistência que lhe precede e segue. Não é fácil dizer exatamente como começa um processo de emancipação coletiva. Mas é possível sentir a vibração que ele produz nos corpos que atravessa. Tampouco é possível resumi-lo em uma única narrativa. O que é peculiar aos movimentos ecológicos, transfeministas e antirracistas é a multiplicação de vozes, a articulação de séries heterogêneas, a pluralidade das línguas.

E com toda essa energia de resistência e luta acumulada, na França, em meio ao mais antigo e rançoso dos impérios patriarco-coloniais, estávamos, há apenas quarenta dias, prestes a iniciar um novo ciclo revolucionário transfeminista descolonial. Há apenas duas décadas, os gurus esquerdistas radicais do Tiqqun (1) diziam que a menina era a figura central da domesticação consumista do capitalismo contemporâneo — ao mesmo tempo o cidadão modelo e o corpo que melhor encarnava a nova fisionomia do capitalismo neoliberal. O Tiqqun contou entre as moças a bicha consumista e o “bad boy” suburbano racista e vadio (como imaginar isso sem pensar em cair no deslocamento homofóbico e racista!). Eles imaginavam “a menina” como o produto de uma equação entre altos índices de opressão e um alto grau de subserviência complacente que inevitavelmente produzia um mínimo de consciência política. Nossos amigos do Tiqqun não previam que eles, as meninas, as bichas, os trans e os corpos racializados dos subúrbios, liderariam a próxima revolução.

Um dia, sem avisar os gurus de esquerda, os patriarcas ou os patrões, as meninas estupradas começaram a tirar os estupradores do armário do abuso sexual. Havia arcebispos e pais de família, professores e líderes empresariais, médicos e treinadores, cineastas e fotógrafos. Ao mesmo tempo, os corpos sujeitos à violência racial, sexual e de gênero se levantaram por toda parte: os movimentos trans, lésbicos, intersexuais, antirracistas e de defesa direitos das pessoas com diversidade cognitiva ou funcional, trabalhadores precários racializados, trabalhadores e trabalhadoras sexuais, crianças adotadas… Em meio a esse turbilhão de insurreições, a cerimônia do César tornou-se a tomada transfeminista descolonial da Bastilha televisionada. Em primeiro plano, Aïssa Maïga denuncia o racismo institucional do cinema, e, quando dão o César a um Polanski ausente (o estuprador nunca está lá, o estuprador não tem corpo), Adèle Haenel se levanta e vira as costas para os patriarcas do cinema. Dois dias depois, a Subcomandante King Kong junta-se a Aïssa Maïga e Adèle Haenel e, denunciando a cumplicidade das reformas neoliberais de Macron com as políticas de opressão sexual, sexual e racial, decreta uma greve geral das minorias subjugadas: “A partir de agora nos levantamos e partimos”.

E nos levantamos e partimos aos milhares à manifestação de 8 de março. Tínhamos descido às ruas de Paris e a noite tinha se tornado uma assembleia de tecnofeiticeiras perseguidas pela polícia. Mas nem a polícia e nem a chuva poderiam arruinar a insurreição. Nunca uma marcha foi tão bela: avós e netas, bichas e heterodissidentes, lésbicas e trans, afroeuropeias e pálidas, de cadeiras de rodas e mãos falantes, masculinizadas e trans, migrantes e proletárias. Não falávamos mais sobre ir ou não assistir aos pequenos filmes de Polanski, falávamos em fazer uma revolução.

Sim, sim, embora não o soubessem, estávamos à beira de um levante transfeminista descolonial, tínhamos reunido nossos comandos e, como dizem os zapatistas, tínhamos “gerido nossa raiva”. Mas tudo isso foi poucos dias antes da Covid-19, antes de sermos obrigados a nos fechar em nossas casas, antes de nossos corpos serem objetivados como organismos suscetíveis à transmissão e ao contágio, antes de nossas estratégias de luta serem descoletivizadas e nossas vozes, fragmentadas.

Se o capitalismo mundial patriarco-colonial tivesse sido capaz de organizar uma estratégia transversal, de Hong Kong a Barcelona passando por Varsóvia, para dissolver movimentos dissidentes, não teria encontrado uma fórmula melhor do que a imposta pelo vírus, com o confinamento, barreiras e a nova rastreabilidade digital dos telecidadãos. A “estratégia do choque” anunciada por Naomi Klein, com seus passos para instrumentalizar o desastre “natural”, para declarar o estado de emergência, para transformar a crise em modo de governo, para salvar primeiro e sempre os bancos e as multinacionais enquanto as pessoas morrem… está aos poucos se desenvolvendo diante de nós. Tudo isso é verdade, mas afirmá-lo sem perceber a possibilidade de uma resistência igualmente estratégica, sem levar em conta o impacto que a crise da Covid-19 está tendo sobre a consciência individual e coletiva, é também naturalizar a opressão, tomá-la como certa, assinar um cheque em branco em nome do capitalismo neoliberal para o apocalipse.

O que podemos aprender sobre a gestão neoliberal da Covid-19 quando a examinamos de uma perspectiva transfeminista descolonial? É justamente em momentos como este que precisamos, para colocá-lo nas palavras da politóloga feminista e descolonial Françoise Vergès, ativar o pensamento utópico, como energia e como força de revolta, como sonho emancipatório e como gesto de ruptura. Deve-se reconhecer que a gestão da crise da Covid-19 gerou não apenas um estado político de exceção ou uma regulação higiênica do corpo social, mas também o que poderia ser chamado, seguindo os psicanalistas Félix Guattari e Suely Rolnik, de um estado de exceção micropolítico, uma crise da infraestrutura da consciência, da percepção, do sentido e da significação. E essa ruptura micropolítica é nossa única chance.

Parem o mundo… eu quero descer…

Todas as culturas, em diferentes épocas da história, inventaram processos de quarentena, de jejum, de ruptura dos ritmos alimentares, sexuais e produtivos da vida. Essas rupturas funcionam como técnicas de modificação da subjetividade, ativando um processo de perturbação da percepção e dos sentidos que pode gerar, em última instância, uma “metamorfose”, um devir outro. Algumas línguas do xamanismo ameríndio chamam este processo de “parar o mundo”. E isto é literalmente o que aconteceu durante a crise da Covid-19. O mundo capitalista parou.

Analisando a relação estrutural entre aceleração e capitalismo, o sociólogo alemão Hartmut Rosa descreveu a crise da Covid-19 como a experiência coletiva mais importante do século, pois mostra que podemos, graças a um conjunto de decisões políticas coordenadas, parar a aceleração capitalista. E essa desaceleração repentina não tem apenas um impacto econômico, é também igualmente suscetível a produzir outras formas de subjetivação.

Se observarmos, com o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, os diferentes rituais xamânicos das sociedades ameríndias para “parar o mundo”, poderíamos dizer que a maioria deles tem pelo menos três etapas. Na primeira, o sujeito é confrontado com sua condição mortal; na segunda, ele vê sua posição na cadeia trófica e percebe os elos energéticos que unem tudo que vive e dos quais ele mesmo faz parte; na terceira e última, antes da metamorfose, ele modifica radicalmente seu desejo, o que talvez lhe permita tornar-se outro. Não falo aqui de uma experiência religiosa porque não me refiro a nenhum saber teológico ou transcendente. Muito pelo contrário. Mas seria possível entender as mudanças sociais e políticas que a crise da Covid-19 gerou como uma espécie de gigantesco ritual tecnoxamânico para “parar o mundo” capaz de introduzir mudanças significativas em nossas tecnologias da consciência. As três etapas do xamanismo tupi poderiam funcionar, em escala global, como um prelúdio a uma metamorfose política da consciência para uma mudança de paradigma planetária.

1. Sideração, finitude e morte: necropolítica na economia neoliberal

Como a feminista boliviana María Galindo tem apontado, a especificidade desta pandemia não é sua taxa de mortalidade elevada, mas o fato de ameaçar os corpos soberanos do Norte capitalista mundial: os homens brancos europeus e norte-americanos de mais de 50 anos. Quando a AIDS sacudiu o mundo nos anos 80, nenhum político levantou um dedinho institucional sequer por considerar que aqueles que estavam morrendo (homossexuais, drogados, haitianos, africanos, profissionais do sexo, trans…) eram melhores mortos do que vivos. Nenhuma medida preventiva ou curativa foi aplicada naquela época, ao invés disso eles empregaram estritamente técnicas de estigmatização, exclusão e morte. O mesmo acontece hoje enquanto o vírus ebola, a tuberculose, a dengue e a AIDS estão semeando a morte nos países do Sul, com sistemas de saúde inexistentes ou enfraquecidos por políticas neocoloniais, de endividamento e de austeridade.

Mas hoje, e pela primeira vez desde a descoberta da penicilina, a Covid-19 colocou as sociedades opulentas do Norte e os antigos impérios coloniais europeus frente a frente com a morte de uma forma generalizada. Embora se aproprie de 90% das riquezas mundiais, o corpo soberano do capitalismo patriarco-colonial do Norte se confronta com sua condição vulnerável e mortal. Diante do vírus, nem os ativos financeiros nem as reservas de capital podem salvá-lo. A crise da Covid-19 é uma crise de soberania do corpo branco masculino e heterossexual do capitalismo patriarco-colonial. Isto também é igualmente verdadeiro para todos aqueles que, a partir de outras posições corporais ou de identificação, partilham de uma forma ou de outra dos privilégios soberanos do Norte. As filas de cadáveres em sacos plásticos e valas comuns em Hart Island, no estado de Nova York, assim como em todas as grandes cidades ricas, as cremações sem possibilidade de funerais ou rituais de luto, colocaram brutalmente o corpo soberano das sociedades capitalistas e patriarco-coloniais do Norte na situação em que os corpos de refugiados, migrantes, trabalhadores pobres, feminizados e racializados do Norte e também do Sul colonizado e globalizado estiveram e continuam estando. Esta é a primeira lição do ritual tecnoxamânico mundial: só será possível tornar as lutas transversais quando também compartilharmos as experiências de desapropriação, opressão e morte que o capitalismo gera.

2. A metafísica canibal do capitalismo patriarco-colonial

Nos rituais xamânicos de “metamorfose”, através do uso de plantas psicotrópicas e outras técnicas corporais (jejum, dança, escarificação, tatuagem, modificação da aparência corporal, repetição da linguagem), o iniciado, para mudar, deve primeiro tomar consciência de sua posição na cadeia de produção, reprodução e consumo de energia vital. É o que os antropólogos têm chamado de “ver a cadeia trófica”. O iniciado entende, por exemplo, que ele extrai vida e energia das plantas ou animais (ou humanos, no caso de culturas antropófagas) que ele mata para a alimentação ou outros fins. Em algumas sociedades tupis, o objetivo é entender a diferença entre “matar por comida” e “matar para acumular poder”. Para mudar, é necessário que a pulsão de acumulação de poder que capturou a totalidade do desejo seja progressivamente percebida como uma acumulação de morte, como um veneno cuja reserva ameaça o equilíbrio da vida.

A crise da Covid-19, com sua amplificação das formas de opressão e com a exposição das disfunções institucionais das democracias neoliberais, tornou visível a cadeia trófica do capitalismo patriarco-colonial. A cartografia da expansão do vírus e os efeitos exponenciais que ele tem provocado na economia mundial nos permitiu “ver” a ligação entre desmatamento e contaminação viral, entre a indústria agroalimentar e a indústria farmacêutica, entre a exploração e desapropriação da massa de trabalhadores pobres no Sul global e a exploração de corpos racializados no Norte, entre política de transporte e as economias petrolíferas, entre teletrabalho e pornografia digital. Wuhan é uma das principais oficinas da indústria automobilística mundial, onde são fabricadas peças sobressalentes da Peugeot e da Citröen. China, Índia e Paquistão são as oficinas têxteis do mundo; o Sul do continente americano e a África continuam sendo os principais centros de extração de metais raros e das matérias-primas necessárias para a fabricação da mais alta tecnologia do mundo. No passado, para citar o escritor Eduardo Galeano, na periferia do capitalismo mundial, “o ouro era transformado em lixo e a comida em veneno”. Hoje, os fluxos do capitalismo estão saturados: o lixo chega às praias do Norte e o veneno está em nossos pratos.

A crise também colocou em evidência o funcionamento antropofágico do capitalismo patriarco-colonial. A modernidade colonial segmentou os corpos vivos em espécies, classes, nacionalidades, raças, sexos, sexualidades, deficiências… Nesta economia-mundo, alguns são colocados na posição naturalizada de predadores e outros de presas. A violência sexual e racial está em mutação com o vírus. A máscara e o macacão higiênico apagam a diferença social entre homens e mulheres, negros e brancos. Mas sob o macacão e por trás da máscara, as diferenças políticas persistem e se acentuam. Por um lado, há o confinamento social dos brancos abastados; por outro, a contaminação forçada de trabalhadores pobres, feminizados e racializados.

As instituições democráticas que supostamente protegem os mais vulneráveis (crianças, doentes, idosos, pessoas com necessidades funcionais ou psicológicas específicas…) revelam sua cumplicidade com as estruturas do capitalismo patriarco-colonial e se comportam como o Estado sempre fez em contextos totalitários ou coloniais: abandonando, extorquindo, oprimindo, mentindo, administrando a punição e a morte. As instituições fragilizadas pela privatização neoliberal estão sofrendo uma mutação e se fagocitando entre si: a guerra de que os governos falam é a guerra que as instituições travam contra seus cidadãos. Os hospitais viram trincheiras, os asilos viram necrotérios, ginásios esportivos viram centros de detenção para os sem-teto, as prisões viram muros de pelotão de fuzilamento viral.

A guerra também está dentro da casa. O espaço doméstico, núcleo de retiro imunológico, revela-se não apenas como uma ilha de proteção, mas também como um concentrado de todas as formas de opressão e violência heteropatriarcais. Durante o confinamento, os casos de abuso e violência sexual multiplicam-se. O teletrabalho é rei. Ninguém reconhece o trabalho de cuidado e reprodução, de afeto e sexualidade, como trabalho. À precariedade de classe, raça, sexo e sexualidade somam-se agora outras segmentações de poder: os expostos e os protegidos, os que limpam e os que são limpos, os que são expostos ao contágio e os que podem preservar sua imunidade, os sem-teto e os que podem se isolar em suas casas, os que cuidam e os que são cuidados.

A crise da Covid-19 e sua capacidade de colocar em evidência a estrutura intrinsecamente ligada de todas as formas de opressão poderia nos ajudar a nomear os contornos de um novo sujeito revolucionário planetário para o qual as formas de opressão baseadas em raça, sexo, classe ou deficiência não se opõem umas às outras, mas se entrelaçam e amplificam. Nos últimos dois séculos, houve centenas de lutas, mas todas elas foram fragmentadas. Em retrospectiva, pode-se dizer que as políticas de emancipação têm sido caracterizadas pelo fato de terem sido estruturadas de acordo com a lógica da identidade. Os principais movimentos de ampliação do horizonte democrático foram construídos em torno de posições binárias que acabaram renaturalizando os sujeitos políticos da luta e criando exclusões: o feminismo para as mulheres heterossexuais e brancas — para não dizer homofóbicas, transfóbicas e racistas; políticas LGBT para homossexuais, bissexuais ou transexuais, especialmente brancos e abastados; políticas antirracistas para pessoas racializadas e outros corpos do lumpen somatopolítico mundial…

Por outro lado, as lutas até agora foram estruturadas em função das tensões modernas entre reconhecimento e justiça, entre liberdade e igualdade, entre natureza e cultura. Temos visto crescer o antagonismo entre políticas de classe e políticas de gênero, e a libertação feminista tem sido instrumentalizada para legitimar as políticas racistas e antimigratórias.

Buscando superar as tradicionais e reducionistas oposições entre movimento operário e feminismo, entre descolonização e ecologia, vozes tão diferentes quanto as das teóricas feministas Silvia Federici, Françoise Vergès e Donna Haraway nos convidam a imaginar a classe trabalhadora contemporânea como um vasto conjunto de corpos mineralizados, vegetalizados, animalizados, feminizados e racializados que realizam o trabalho desvalorizado da reprodução energética, sexual, afetiva e social da tecnovida sobre o planeta Terra. Essa perspectiva transecofeminista e descolonial também implica mudar a representação do sujeito político e sua soberania. A próxima revolução não é uma negociação de cotas de representação identitárias ou um ajuste de graus de opressão. A revolução vindoura coloca a emancipação do corpo vivo vulnerável no centro do processo de produção e reprodução política.

Ao naturalizar a esfera da reprodução social e sexual, as filosofias políticas do marxismo e do liberalismo têm enfatizado o controle dos meios de produção. Somente as linguagens políticas do fascismo fizeram da captura violenta dos meios de reprodução da vida (a definição de masculinidade e feminilidade, da família, da “pureza de raça”) o centro de seu discurso e ação políticos. Estamos agora confrontados, dos Estados Unidos de Trump ao Brasil de Bolsonaro, da Polônia de Andrzej Duda à Turquia de Erdogan, com a expansão das formas neonacionalistas e tecnopatriarcais do totalitarismo. Enfrentaremos também, antes cedo que tarde, e de forma brutal, a legalização do rastreamento telefônico, a expansão mundial de formas de tecnototalitarismo e de vigilância biodigital.

Diante dessas duas formas de totalitarismo, os produtivismos patriarco-coloniais, tanto neoliberais quanto socialistas, não poderão agir como verdadeiras forças antagônicas, pois ambos compartilham o mesmo ideal de produtividade e crescimento econômico e postulam o mesmo corpo político soberano: um sujeito branco, viril e heterossexual. Alguns querem recuar. Outros querem acelerar. Nenhum dos dois quer mudar. Esta talvez seja a lição mais importante deste ritual tecnoxamânico de “parar o mundo”. Somente uma nova aliança de lutas transfeministas, anticoloniais e ecológicas poderá combater ao mesmo tempo a privatização das instituições, a economia da dívida, a financeirização do valor do neoliberalismo e os discursos do totalitarismo neonacionalista, tecnopatriarcal e neocolonial. Somente uma revolução somatopolítica transversal será capaz de desencadear uma alternativa real.

3. Mutação do desejo político e a revolução

Esta terceira etapa é, nos rituais xamânicos, a que permite construir-se como outro, ativando um processo de metamorfose que pode implicar uma mudança de nome, um deslocamento institucional, um exílio, uma deriva… O último ensinamento desta crise da Covid-19 como ritual tecnoxâmico mundial é que só uma mutação do desejo político pode colocar em movimento a transição epistemológica e social capaz de deslocar o regime capitalista patriarco-colonial. A ativista negra americana Angela Davis disse que, durante os anos de segregação racial nos Estados Unidos, o mais difícil era imaginar que as coisas poderiam ser diferentes do que eram. O problema fundamental com que somos confrontados é que o regime capitalista patriarco-colonial colonizou a função desejante, cobrindo-a de valores monetários, de uma semiótica da violência, de modos de objetivação consumistas e de submissão depressiva. A chave do capitalismo patriarco-colonial não é a produção de mais-valia econômica, mas a fabricação de uma subjetividade cujos desejos foram adaptados ao processo de produção de capital e à reprodução heterossexual e colonial da vida. A violência opera fabricando uma subjetividade normativa que toma posse do corpo e da consciência até que eles aceitem “se identificar” com o próprio processo de extração de sua própria vida. A primeira coisa que o poder extrai, modifica e destrói é a nossa capacidade de desejar a mudança. Até hoje, todo o edifício capitalista patriarco-colonial tem se baseado numa estética hegemônica que limita o campo da percepção, corta a sensibilidade e captura o desejo. E é esse desejo que entrou em crise com a “parada do mundo” que a gestão do vírus gerou.

Na década de 70, Mafalda, mais uma vez uma garota raivosa, popularizou o slogan “parem o mundo, eu quero descer”. Agora o mundo parou. A questão é se desta vez nós realmente queremos descer.

(1) Tiqqun é uma revista filosófica de inspiração anarquista e pós-situacionista fundada em 1999 por Julien Coupat, absolvido em 2018 pelo caso Tarnac, em que foi suspeito de sabotar uma linha do TGV [trem de alta velocidade].

Corona fashion, de Paul B. Preciado

Posted on 11/10/2020 - 11/10/2020 by Ninguém

Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/05/08/corona-fashion_1787839

 

A nova tendência é o look completo Chernobil-médico. Lá onde toda relação social é contagiosa, a moda-proteção vira lei.

 

A nova estação primavera-verão chegou à cidade confinada. A primavera do vírus impõe uma segmentação radical entre o interior e o exterior. Em casa, o fascínio dos penteados malcuidados faz esquecer a severidade padronizada do corte de salão. Um novo look eco-tecno-coronário se afirma com o cabelo desgrenhado, barba por fazer e raízes pretas. O estilo largado é a melhor prova do confinamento, e, portanto, da imunidade. E a imunidade é chic. Na roupa, as calças de pijama desbancam o jeans. Os chinelos substituem os tênis.

Na parte externa, a mão nua é substituída pela luva de borracha, branca, amarela ou azul. Qualquer objeto plástico — uma garrafa de água de 6 litros, um guarda-chuva, óculos de mergulho, um separador de páginas— traz em si a possibilidade de se tornar um acessório higiênico. O saco de lixo é o novo prêt-à-porter, tanto nos hospitais como nos asilos e campos de refugiados. O látex se impôs. Epidemiologistas alertam que o plástico é uma das superfícies a que o vírus melhor adere. Mas o plástico protege contra o medo mesmo sem evitar o contágio.

Fora do espaço doméstico a máscara se tornou o preservativo social das massas. O setor têxtil, o mais dependente dos fornecimentos da China, vê sua produção praticamente bloqueada. A China não é apenas o epicentro do vírus, é também o ateliê em que metade das roupas do mundo é costurada. O Inditex, grupo têxtil líder internacional, colapsa nas bolsas de valores. Quem precisa de uma camisa nova no período de confinamento? As principais marcas de moda, Yves Saint Laurent, Balenciaga, LVMH… reciclam seus ateliês para produzir máscaras, aventais médicos e macacões protetores. Apesar de tudo isso, a China continua sendo o maior produtor mundial… de máscaras, até agora.

Os rostos do mundo desaparecem sob a máscara, médica ou de contrabando, caseira ou comprada na Amazon, luxuosa ou barata, certificada ou não certificável, aquela que mais contamina que protege. Acessório de moda por excelência em 2020, a máscara já havia aparecido nos desfiles da semana de moda em Londres, Milão e Paris no início de 2019, antes da crise do vírus ser declarada na Europa: Chanel, Kenzo, Marine Serre, Pitta Mask, Xander Zhou assinaram modelos exclusivos. A higiene se alia ao estilo. No digital reina a selfie, no analógico só há “mascarados”. As feministas dos anos 60 queimaram sutiãs e as transfeministas dos anos 2020 fizeram duas máscaras de cada sutiã. Alguém hoje ousaria afirmar que esconder o rosto com um hijab completo é um sinal antirrepublicano?

Os novos aromas da estação são o perfume neutro e transparente do álcool gel, o frescor reconfortante do detergente e o aroma profundo e picante da água sanitária. A nova tendência é o look total Chernobil-médico. Lá onde toda relação social é contagiosa, a moda-proteção vira lei. Quando a economia permite, e o descaso político não impede, os corpos são cobertos por uma epiderme higiênica impenetrável feita de celulose . O branco é a cor dominante da coleção primavera-verão, com toques de amarelo, azul e laranja. O macacão unissex completo é anunciado como a nova capa impermeável urbana de verão. Coberto com um filme protetor, o humano da era Covid-19 parece um morcego escondido sob suas asas de plástico. Seria o macacão higiênico um totem através do qual o contaminante potencial tenta amenizar o vírus, adotando os atributos do animal contaminante?

As mangas e pernas são largas, a silhueta é curva e contínua, do capuz aos pés, a pele fica invisível. A diferença entre calça, camisa, jaqueta, saia e sapato desaparece. Os códigos que permitem o reconhecimento do corpo humano na sociedade se tornam inoperantes. O humano está desfigurado. Camaleões da era tóxica, invisíveis mas presentes, o humano sem rosto e o vírus são parecidos.

A máscara, o macacão e a generalização dos gestos de proteção são a destruição no campo sensível da relação social tal como a conhecemos até agora. O toque se torna impossível, o sorriso, invisível, o movimento de um quadril é imperceptível.

A pele se converte em órgão interno e privado. O corpo é desfamiliarizado, dessingularizado, deserotizado. O macacão higiênico é muito mais e muito menos que um simples vestido. É uma tecno-pele externa e protetora, sob a qual o corpo perde sua forma única. É o estatuto aberto do corpo, a porosidade da pele, sua capacidade de se relacionar com o exterior, que é negado. É o corpo enquanto organismo vivo que é negado. Os orifícios do corpo, os que são visíveis, como a boca ou o nariz, mas também os que são microscópicos e estão na epiderme, são cobertos e selados. O macacão traz o corpo social diferenciado de volta ao estado larval, o tira do universo do humano e leva tanto para a entomologia quanto para a robótica. As equipes hospitalares que retiram seus macacões em uma sala higiênica são borboletas humanas que emergem de casulos de seda.

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Textos

  • Hino ao corpo, de Paul B. Preciado
  • Tudo deve mudar, de Paul B. Preciado
  • Por um monumento à necropolítica, de Paul B. Preciado
  • Voltem, corram!, de Paul B. Preciado
  • Os Psiconazis, de Mario Mieli (1980)
  • Homonacionalismo e biopolítica, de Jasbir K. Puar (2007)
  • A categoria sexo, de Monique Wittig (1976/1992)
  • Anti-sexus, de Andrei Platonov (1926)
  • Feminazis, de Paul B. Preciado
  • 2020 a exploração 2.0, de Paul B. Preciado
  • Inexistentes, de Paul B. Preciado
  • A quarta onda, de Paul B. Preciado
  • A velha academia em chamas, de Paul B. Preciado
  • O Brexit e minha dor lombar, de Paul B. Preciado
  • A conspiração dos losers, de Paul B. Preciado
  • Aprendendo com o vírus, de Paul B. Preciado
  • O doente digital, de Paul B. Preciado
  • As palavras que eu não posso lhes dizer, de Paul B. Preciado
  • Estávamos prestes a fazer a revolução feminista… e então chegou o vírus, de Paul B. Preciado
  • Corona fashion, de Paul B. Preciado

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