Texto original: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html
A gestão política das epidemias põe em cena a utopia da comunidade e as fantasias imunitárias de uma sociedade ao externalizar os sonhos de onipotência de sua soberania política.
Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da AIDS e resistido até a invenção da triterapia [coquetel] teria hoje 93 anos: ele aceitaria de bom grado ficar fechado em seu apartamento na rue Vaugirard? O primeiro filósofo da história a morrer de complicações geradas pelo vírus da imunodeficiência adquirida nos deixou algumas das noções mais eficazes para pensar a gestão política da epidemia, que em meio ao pânico e à desinformação, se tornam tão úteis como uma boa máscara cognitiva.
A coisa mais importante que aprendemos com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (não há política que não seja uma política de corpos). Mas o corpo não é para Foucault um determinado organismo biológico dado sobre o qual o poder posteriormente age. A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, pô-lo a trabalhar, definir seus modos de reprodução, prefigurar os modos de discurso através dos quais esse corpo se ficcionaliza até ser capaz de dizer “eu”. Todo o trabalho de Foucault pode ser entendido como uma análise histórica das diferentes técnicas através das quais o poder gere a vida e a morte das populações. Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou Vigiar e punir e o primeiro volume da História da sexualidade, Foucault usou a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o poder estabeleceu com o corpo social na modernidade. Ele descreveu a transição do que chamou de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinar” como a passagem de uma sociedade que define a soberania em termos de tomada de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gere e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas espalharam-se como uma teia de poder que foi para além da esfera legal ou punitiva para se tornar uma força “somatopolítica”, uma forma de poder espacializado que se estendeu por todo o território até penetrar no corpo individual.
Durante e após a crise da AIDS diversos autores expandiram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e suas relações com as políticas imunitárias. O filósofo italiano Roberto Esposito analisou as relações entre a noção política de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”. Comunidade e imunidade compartilham uma raiz comum, munus, em latim o munus era o imposto que alguém deveria pagar por viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é cum (con) munus (dever, lei, obrigação, mas também oferta): um grupo humano que está ligado por uma lei e uma obrigação comuns, mas também por um dom, por uma oferta. O substantivo inmunitas é uma palavra privativa que deriva da negação do munus. No direito romano, a inmunitas era uma dispensa ou um privilégio que liberava alguém de deveres societários comuns a todos. Aquele que tinha sido liberado era imune. Enquanto desmunido era aquele de quem se tinha retirado todos os privilégios da vida comunitária.
Roberto Esposito nos ensina que toda biopolítica é imunológica: implica uma definição de comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre aqueles corpos que estão isentos de impostos (aqueles que são considerados imunes) e aqueles que a comunidade percebe como potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos em um ato de proteção imunológica. Esse é o paradoxo da biopolítica: todo ato de proteção implica uma definição imunitária da comunidade segundo a qual esta dará a si mesma a autoridade de sacrificar outras vidas em benefício de uma ideia de sua própria soberania. O estado de exceção é a normalização deste paradoxo insuportável.
A partir do século XIX, com a descoberta da primeira vacina contra a varíola e as experiências de Pasteur e Koch, a noção de imunidade saiu do âmbito do direito e adquiriu significado médico. As democracias europeias liberais e patriarcais do século XIX construíram o ideal do indivíduo moderno não só como um agente (masculino, branco, heterossexual) econômico livre, mas também como um corpo imune, radicalmente separado, que não deve nada à comunidade. Para Esposito, a forma como a Alemanha nazista caracterizou parte de sua própria população (os judeus, mas também os ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência) como corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos da gestão imunitária. Este entendimento imunológico da sociedade não terminou com o nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na Europa legitimando as políticas neoliberais de gestão de suas minorias racializadas e das populações migrantes. Foi este entendimento imunológico que forjou a comunidade econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da Frontex nos últimos anos.
Em 1994, em Flexible Bodies, a antropóloga da Universidade de Princeton Emily Martin analisou a relação entre imunidade e política na cultura americana durante as crises da poliomielite e da AIDS. Martin chegou a algumas conclusões que são pertinentes para analisar a crise atual. A imunidade corporal, argumenta Martin, não é apenas um mero fato biológico independente de variáveis culturais e políticas. Pelo contrário, o que entendemos por imunidade é construído coletivamente através de critérios sociais e políticos que produzem alternativamente soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.
Se repensarmos a história de algumas das epidemias mundiais dos últimos cinco séculos através do prisma oferecido por Michel Foucault, Roberto Esposito e Emily Martin, é possível elaborar uma hipótese que poderia tomar a forma de uma equação: diga-me como sua comunidade constrói sua soberania política e eu lhe direi que formas suas epidemias tomarão e como você lidará com elas.
As diferentes epidemias materializam no âmbito do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações num determinado período. Para colocar nos termos de Foucault, uma epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas aplicadas ao território nacional para o nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma epidemia torna possível estender a toda a população as medidas políticas de “imunização” que até então tinham sido aplicadas violentamente àqueles considerados “estrangeiros” tanto dentro como fora das fronteiras do território nacional.
A gestão política das epidemias põe em cena a utopia da comunidade e as fantasias imunitárias de uma sociedade ao externalizar os sonhos de onipotência (e os estrondosos fracassos) de sua soberania política. A hipótese de Michel Foucault, Roberto Esposito e Emily Martin nada tem a ver com uma teoria da conspiração. Não se trata da ridícula ideia de que o vírus é uma invenção de laboratório ou um plano maquiavélico para difundir políticas ainda mais autoritárias. Pelo contrário, o vírus atua em nossa imagem e semelhança, não faz mais que reproduzir, materializar, intensificar e estender a toda a população as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já operavam no território nacional e seus limites. Assim, cada sociedade pode definir-se pela epidemia que a ameaça e pela forma como se organiza em face dela.
Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu pela primeira vez a cidade de Nápoles em 1494. A empreitada colonial europeia tinha acabado de começar. A sífilis foi como o pontapé inicial da destruição colonial e as políticas raciais que viriam com ela. Os ingleses a chamavam “a doença francesa”, os franceses diziam que era “a doença napolitana” e os napolitanos diziam que ela tinha vindo da América: dizia-se que ela tinha sido trazida pelos colonizadores infectados pelos índios… O vírus, como nos ensinou Derrida, é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estranho. Infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI a XIX as formas de repressão e exclusão social que dominaram a modernidade patriarcal-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição dos chamados “casamentos mistos” entre pessoas de diferentes classes e “raças” e as múltiplas restrições às relações sexuais e extraconjugais.
A utopia de comunidade e o modelo de imunidade à sífilis é a do corpo branco burguês sexualmente confinado à vida matrimonial como núcleo de reprodução do corpo nacional. Assim, a prostituta tornou-se o corpo vivo que condensou todos os significantes políticos abjetos durante a epidemia: mulher trabalhadora e muitas vezes racializada, corpo fora das regulações do lar e do casamento, que fez de sua sexualidade o seu meio de produção, a trabalhadora do sexo tornou-se visível, controlada e estigmatizada como o principal vetor de propagação do vírus. Mas não foi a repressão da prostituição ou o confinamento de prostitutas em bordéis nacionais (como Restif de la Bretonne imaginava) que curou a sífilis. Pelo contrário. O confinamento das prostitutas só as tornava mais vulneráveis à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta dos antibióticos e, especialmente, da penicilina em 1928, precisamente um momento de profundas transformações da política sexual na Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras descriminalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética do casamento heterossexual.
Meio século depois, a AIDS foi para a sociedade neoliberal heteronormativa do século XX o que a sífilis tinha sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos surgiram em 1981, precisamente no momento em que a homossexualidade deixava de ser considerada uma doença psiquiátrica, depois de ter sido objeto de perseguição e discriminação social durante décadas. A primeira fase da epidemia afetou principalmente os então chamados 4 H: homossexuais, prostitutas [hookers] -trabalhadoras ou trabalhadores sexuais-, hemofílicos e usuários de heroína -heroinômanos-. A AIDS remasterizou e reatualizou a teia de controle sobre o corpo e a sexualidade que a sífilis tinha tecido e que a penicilina, a descolonização, movimentos feministas e homossexuais tinham desmantelado e transformado nas décadas de sessenta e setenta. Como no caso das prostitutas na crise da sífilis, a repressão da homossexualidade só causou mais mortes. O que vem progressivamente transformando a AIDS em uma doença crônica é a despatologização da homossexualidade, a autonomia farmacológica do Sul, a emancipação sexual das mulheres, seu direito de dizer não a práticas sem preservativos e o acesso da população afetada, independentemente de sua classe social ou grau de racialização, às triterapias. O modelo comunidade/imunidade da AIDS tem a ver com a fantasia da soberania sexual masculina entendida como o direito inegociável de penetração, enquanto todo o corpo sexualmente penetrado (homossexual, mulher, toda forma de analidade) é percebido como desprovido de soberania.
Voltemos agora a nossa situação atual. Muito antes do aparecimento do Covid-19 já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Já estávamos passando, antes do vírus, por uma mudança social e política tão profunda quanto a que afetou as sociedades que sofreram a sífilis. No século XV, com a invenção da prensa e a expansão do capitalismo colonial, se passou de uma sociedade oral para uma sociedade escrita, de uma produção feudal para uma forma de produção industrial-escravagista e de uma sociedade teocrática para uma sociedade regida por acordos científicos em que as noções de sexo, raça e sexualidade se tornariam dispositivos de controle necro-biopolítico da população.
Hoje estamos passando de uma sociedade escrita para uma sociedade ciber-oral, de uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico para formas de controle microprostéticas e midiático-cibernéticas. Em outros textos chamei de farmacopornografia o tipo de gestão e produção do corpo e da subjetividade sexual dentro desta nova configuração política. O corpo e a subjetividade contemporâneos já não são regulados apenas por sua passagem por instituições disciplinares (escola, fábrica, quartel, hospital, etc.), mas sobretudo por um conjunto de tecnologias biomoleculares, microprostéticas, digitais, de transmissão e de informação. No âmbito da sexualidade, a modificação farmacológica da consciência e do comportamento, a globalização da pílula contraceptiva para todas as “mulheres”, assim como a produção de triterapias, de terapias preventivas para a AIDS e o viagra são alguns dos indicadores da gestão biotecnológica. A extensão global da Internet, a generalização do uso de tecnologias informáticas móveis, o uso de inteligência artificial e de algoritmos na análise de big data, o intercâmbio de informação em alta velocidade e o desenvolvimento de dispositivos de vigilância global por satélite são indicadores desta nova gestão semiótico-técnica digital. Se lhes chamei pornográficos é, em primeiro lugar, porque estas técnicas de biovigilância são introduzidas no corpo, atravessam a pele, nos penetram; e em segundo lugar, porque os dispositivos de biocontrole já não funcionam pela da repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas pela incitação ao consumo e à produção constante de um prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e mais saudáveis estamos, melhor somos controlados.
A mutação que está ocorrendo poderia ser também a passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista, de uma sociedade antropocêntrica e de uma política onde uma parte muito pequena da comunidade humana planetária autoriza a si mesma a realizar práticas de predação universal, para uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma sociedade de energias fósseis para uma outra, de energias renováveis. Está também em questão a passagem de um modelo binário de diferença sexual para um paradigma mais aberto em que a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva de um corpo não definem sua posição social a partir do momento do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal para formas não hierárquicas de reprodução da vida. O que estará no centro do debate durante e depois desta crise é quais vidas estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas. É no contexto desta mutação, da transformação das formas de entender a comunidade (uma comunidade que hoje é a totalidade do planeta) e a imunidade, que o vírus opera e se torna uma estratégia política.
Imunidade e política da fronteira
O que caracterizou as políticas governamentais nos últimos 20 anos, desde pelo menos a queda das torres gêmeas, diante das aparentes ideias de liberdade de movimento que dominaram o neoliberalismo da era Thatcher, foi a redefinição dos estados-nação em termos neocoloniais e identitários e o retorno à ideia da fronteira física como condição de restauração da identidade nacional e da soberania política. Israel, Estados Unidos, Rússia, Turquia e a Comunidade Econômica Europeia lideraram o desenho de novas fronteiras que, pela primeira vez em décadas, não só foram vigiadas ou guardadas, mas também restabelecidas pela decisão de levantar muros e construir diques, e defendidas com medidas que não são biopolíticas, mas necropolíticas, com técnicas de morte.
Como sociedade europeia, decidimos nos construir coletivamente como uma comunidade totalmente imune, fechada ao Leste e ao Sul, enquanto o Leste e o Sul, do ponto de vista dos recursos energéticos e da produção de bens de consumo, são nosso armazém. Fechamos a fronteira na Grécia, construímos os maiores centros de detenção a céu aberto da história nas ilhas próximas à Turquia e ao Mediterrâneo e imaginamos que assim conseguiríamos uma forma de imunidade. A destruição da Europa começou paradoxalmente com essa construção de uma comunidade europeia imune, aberta em seu interior e totalmente fechada aos estrangeiros e migrantes.
O que está sendo testado em escala planetária pela gestão do vírus é uma nova forma de entender a soberania em um contexto onde a identidade sexual e racial (eixos da segmentação política do mundo patriarcal-colonial até agora) está sendo desarticulada. O Covid-19 deslocou as políticas de fronteira que ocorriam no território nacional ou no superterritório europeu para o nível do corpo individual. O corpo, seu corpo individual, como espaço vivo e como tessitura de poder, como centro de produção e consumo de energia, se tornou o novo território em que as políticas agressivas de fronteira que temos desenvolvido e testado há anos se expressam agora sob a forma de barreira e guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica se deslocou das costas da Grécia para a porta do domicílio privado. Lesbos agora começa na porta de sua casa. E a fronteira não para de te cercar, se empurra até se aproximar cada vez mais de seu corpo. Calais agora explode na sua cara. A nova fronteira é a máscara. O ar que respira deve ser só seu. A nova fronteira é sua epiderme. A nova Lampedusa é sua pele.
Se reproduzem agora sobre os corpos individuais as políticas da fronteira e as medidas rigorosas de confinamento e imobilização que, como comunidade, temos aplicado nos últimos anos a migrantes e refugiados -a ponto de deixá-los fora de qualquer comunidade-. Durante anos os deixamos no limbo dos centros de detenção. Agora somos nós que vivemos no limbo do centro de detenção de nossas próprias casas.
A biopolítica na era ‘farmacopornográfica’
As epidemias, por seu apelo ao estado de exceção e pela imposição inflexível de medidas extremas, são também grandes laboratórios de inovação social, ocasião para uma reconfiguração em larga escala das técnicas do corpo e das tecnologias do poder. Foucault analisou a passagem da gestão da lepra para a gestão da praga como o processo através do qual as técnicas disciplinares de espacialização do poder da modernidade foram implantadas. Se a lepra tivesse sido enfrentada com medidas estritamente necropolíticas que excluíssem o leproso, condenando-o, se não à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a reação à epidemia de peste inventou a gestão disciplinar e suas formas de inclusão excludente: estrita segmentação da cidade, confinamento de cada corpo em cada casa.
As diferentes estratégias que os diferentes países adotaram em resposta à disseminação do Covid-19 mostram dois tipos totalmente diferentes de tecnologias biopolíticas. A primeira, em funcionamento principalmente na Itália, Espanha e França, aplica medidas estritamente disciplinares que não são, em muitos aspectos, muito diferentes daquelas utilizadas contra a peste. É o confinamento domiciliar de toda a população. Vale a pena reler o capítulo sobre a gestão da peste na Europa em Vigiar e punir para perceber que as políticas francesas de gestão do Covid-19 não mudaram muito desde então. Aqui funciona a lógica da fronteira arquitetônica e o tratamento de casos de infecção dentro dos enclaves hospitalares clássicos. Esta técnica ainda não mostrou provas de eficácia total.
A segunda estratégia, implementada pela Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Hong Kong, Japão e Israel, envolve passar das modernas técnicas disciplinares e de controle arquitetônico para as técnicas farmacopornográficas de biovigilância: aqui a ênfase está na detecção individual do vírus pela multiplicação dos testes e da vigilância digital constante e rigorosa dos pacientes através dos seus dispositivos informáticos móveis. Os celulares e os cartões de crédito se convertem em instrumentos de vigilância que permitem traçar os movimentos do corpo individual. Não precisamos de pulseiras biométricas: o celular se tornou a melhor pulseira, ninguém o deixa nem para dormir. Uma aplicação GPS informa a polícia sobre os movimentos de qualquer corpo suspeito. A temperatura e o movimento de um corpo individual são monitorados através de tecnologias móveis e observados em tempo real pelo olhar digital de um Estado ciber-autoritário para o qual a comunidade é uma comunidade de ciber-usuários e a soberania é, acima de tudo, transparência digital e gestão de big data.
Mas essas políticas de imunização política não são novas e não foram implantadas antes apenas para a busca e captura dos chamados terroristas: desde o início da década de 2010, por exemplo, Taiwan legalizou o acesso a todos os contatos de celulares em aplicações de encontros sexuais a fim de “prevenir” a disseminação da AIDS e da prostituição na Internet. O Covid-19 legitimou e ampliou essas práticas estatais de biovigilância e controle digital as padronizando e tornando “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No entanto, os mesmos Estados que estão implementando medidas de vigilância digital extrema ainda não estão considerando a proibição do tráfico e consumo de animais selvagens, ou a produção industrial de aves e mamíferos, ou a redução das emissões de CO2. O que tem aumentado não é a imunidade do corpo social, mas a tolerância dos cidadãos ao controle cibernético estatal e empresarial.
A gestão política do Covid-19 como forma de administração da vida e da morte desenha os contornos de uma nova subjetividade. O que terá sido inventado após a crise é uma nova utopia de comunidade imune e uma nova forma de controle do corpo. O sujeito do tecnopatriarcado neoliberal que o Covid-19 fabrica não tem pele, é intocável, não tem mãos. Não troca bens físicos, nem toca em moedas, paga com cartões de crédito. Não tem lábios, não tem língua. Não fala ao vivo, deixa uma mensagem de voz. Não se encontra nem se coletiviza. É radicalmente indivíduo. Não tem rosto, tem máscara. Seu corpo orgânico se oculta para poder existir por trás de uma série indefinida de mediações semio-técnicas, uma série de próteses cibernéticas que lhe servem de máscara: a máscara do endereço de e-mail, a máscara da conta do Facebook, a máscara do Instagram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta bancária, uma porta com um nome, um endereço para o qual a Amazon pode enviar seus pedidos.
A prisão suave: bem-vindo à telerrepública de sua casa
Uma das mudanças centrais das técnicas biopolíticas farmacopornográficas que caracterizam a crise do Covid-19 é que o lar — e não as instituições tradicionais de confinamento e padronização (hospital, fábrica, prisão, escola) — aparece agora como o novo centro de produção, consumo e controle biopolítico. Já não se trata apenas de a casa ser o local de isolamento do corpo, como era o caso na gestão da peste. O lar se tornou agora o centro da economia do teleconsumo e da teleprodução. O espaço doméstico existe agora como um ponto em um espaço ciber-vigiado, um lugar identificável num mapa do google, uma caixa reconhecível por um drone.
Se eu me interessei pela Mansão Playboy na época foi porque ela funcionava no meio da Guerra Fria como um laboratório no qual estavam sendo inventados novos dispositivos de controle farmacopornográfico do corpo e da sexualidade, que seriam estendidos a partir do início do século 21 e que agora estão sendo estendidos a toda a população mundial com a crise do Covid-19. Quando fiz minha pesquisa sobre a Playboy fiquei impressionado com o fato de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter passado quase 40 anos sem sair da Mansão, vestindo apenas pijama, roupão e pantufas, bebendo coca-cola e comendo Butterfingers, e que ele teria dirigido e produzido a revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de casa ou mesmo de sua cama. Complementada com uma câmera de vídeo, uma linha telefônica, rádio e música ambiente, a cama de Hefner era uma verdadeira plataforma de produção multimídia da vida de seu morador.
O biógrafo Steven Watts chamou Hefner de “um recluso voluntário no seu próprio paraíso”. Adepto de dispositivos de arquivo audiovisual de todo tipo, Hefner, muito antes de existir o celular, Facebook ou WhatsApp, enviava mais de vinte fitas de áudio e vídeo com dicas e mensagens que iam desde entrevistas ao vivo a diretrizes de publicação. Hefner tinha instalado na mansão, em que viviam também uma dezena de Playmates, um circuito fechado de câmeras, e podia acessar todos os cômodos em tempo real a partir de seu centro de controle. Coberta com painéis de madeira e cortinas grossas, mas penetrada por milhares de cabos e preenchida com o que na época era percebido como as mais altas tecnologias de telecomunicação (e que hoje nos parece arcaico como um tam-tam), [a mansão] era ao mesmo tempo totalmente opaca e totalmente transparente. O material filmado pelas câmeras de vigilância também ia parar nas páginas da revista.
A revolução biopolítica silenciosa que a Playboy conduziu significou, além da transformação da pornografia heterossexual em cultura de massa, o questionamento da divisão que tinha fundado a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a diferença entre a fábrica e o lar e com ela a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade. A Playboy abordou essa diferença propondo a criação de um novo enclave de vida: o apartamento de solteiro totalmente ligado às novas tecnologias de comunicação do qual o novo produtor semiótico não precisa sair nem para trabalhar nem para fazer sexo -atividades que, além do mais, tinham se tornado indistinguíveis-. Sua cama giratória era ao mesmo tempo sua mesa de trabalho, um escritório de direção, um cenário fotográfico e um lugar para encontros sexuais, assim como um aparelho de televisão do qual foi filmado o famoso programa Playboy after dark. A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre teletrabalho e a produção imaterial que a gestão da crise do Covid-19 transformou em dever do cidadão. Hefner chamou este novo produtor social de “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a Playboy colocou em marcha foi a erosão (se não a destruição) da distância entre o trabalho e o lazer, entre a produção e o sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e transmitida pelos meios de comunicação da revista e da televisão, era totalmente pública, mesmo que o playboy não deixasse sua casa ou mesmo sua cama. Nesse sentido, a Playboy também questionou a diferença entre as esferas masculina e feminina, tornando o novo operário multimídia, o que na época parecia um oximoro, num homem doméstico. O biógrafo de Hefner nos lembra que esse isolamento produtivo precisava de um suporte químico: Hefner era um grande consumidor de Dexedrina, uma anfetamina que eliminava o cansaço e o sono. Então, paradoxalmente, o homem que não saía da cama nunca dormia. A cama como novo centro de operações multimídia era uma célula farmacopornográfica: só podia funcionar com a pílula contraceptiva, drogas que mantinham o nível de produção elevado e um fluxo constante de códigos semióticos que se tornaram o único alimento verdadeiro que sustentava o playboy.
Tudo isso lhe parece familiar agora? Tudo isso parece muito estranhamente suas próprias vidas confinadas? Recordemos agora os slogans do presidente francês Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saiam de casa e teletrabalhem. As medidas biopolíticas de gestão de contágio impostas em face do coronavírus fizeram de cada um de nós um trabalhador horizontal mais ou menos playboyesco. O espaço doméstico de qualquer um de nós é hoje dez mil vezes mais avançado tecnologicamente que a cama giratória de Hefner era em 1968. Os dispositivos de teletrabalho e telecontrole estão agora na palma das nossas mãos.
Em Vigiar e punir, Michel Foucault analisou as células religiosas de confinamento unipessoal como autênticos vetores que serviram para modelar a passagem das técnicas soberanas e sangrentas de controle do corpo e da subjetividade anteriores ao século XVIII para as arquiteturas disciplinares e os dispositivos de confinamento como novas técnicas de gestão da totalidade da população. As arquiteturas disciplinares eram versões secularizadas das células monásticas nas quais o indivíduo moderno se desenvolveu pela primeira vez como uma alma encerrada num corpo, um espírito de leitura capaz de ler as instruções do Estado. Quando o escritor Tom Wolfe visitou Hefner, ele disse que ele [Hefner] vivia numa prisão tão suave quanto o coração de uma alcachofra. Poderíamos dizer que a Mansão Playboy e a cama giratória de Hefner, convertidos em objeto de consumo pop, funcionaram durante a Guerra Fria como espaços de transição nos quais foram inventados o novo sujeito prostético, ultraconectado, e as novas formas de consumo e controle farmacopornográficas e de biovigilância que dominam a sociedade contemporânea. Esta mutação foi ampliada e amplificada durante a gestão da crise do Covid-19: nossas máquinas portáteis de telecomunicação são os nossos novos carcereiros e os nossos interiores domésticos se tornaram a prisão suave e ultraconectada do futuro.
Mutação ou submissão
Mas tudo isto pode ser uma má notícia ou uma grande oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são os novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as novas células de biovigilância que se torna mais urgente do que nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e de resistência e pôr em marcha novos processos antagônicos.
Ao contrário do que se poderia imaginar, a nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou da separação, mas de uma nova compreensão da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta. Precisamos de um parlamento planetário dos corpos, um parlamento não definido em termos de política de identidade nem de nacionalidades, um parlamento de corpos vivos (vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O acontecimento Covid-19 e suas consequências nos chamam a nos libertar de uma vez por todas da violência com a qual definimos nossa imunidade social. A cura e a recuperação não podem ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social, de fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem surgir de um processo de transformação política. Curar-nos como sociedade significaria inventar uma nova comunidade para além da política de identidade e da fronteira com a qual temos produzido até agora a soberania, mas também para além da redução da vida a sua biovigilância cibernética. Seguir com vida, nos mantermos vivos como planeta, face ao vírus, mas também face ao que pode acontecer, significa pôr em marcha formas estruturais de cooperação planetária. Como o vírus se modifica, se quisermos resistir à submissão também temos de sofrer uma mutação.
É necessário passar de uma mutação forçada para uma mutação deliberada. Devemos nos reapropriar criticamente das técnicas biopolíticas e de seus dispositivos farmacopornográficos. Em primeiro lugar, é imperativo mudar a relação do nosso corpo com as máquinas de biovigilância e biocontrole: elas não são simples dispositivos de comunicação. Temos de aprender coletivamente como alterá-los. Mas também devemos ficar desalinhados. Os Governos estão pedindo o confinamento e o teletrabalho. Sabemos que eles clamam por descoletivização e telecontrole. Usemos o tempo e a força do confinamento para estudar as tradições de luta e resistência das minorias que nos têm ajudado a sobreviver até agora. Desliguemos os celulares, desconectemos a Internet. Façamos o grande blackout face aos satélites que estão nos observando e imaginemos juntos a revolução que vem.