Texto original: https://bulb.liberation.fr/edition/numero-2/nous-etions-sur-le-point-de-faire-la-revolution-feministe/
Há apenas quarenta dias, estávamos à beira de um levante transfeminista descolonial que foi interrompido pela crise da Covid-19. O mundo capitalista parou, deixando-nos uma oportunidade formidável de metamorfose política e social tal como ensina o xamanismo ameríndio.
Não seria fácil dizer como ela começou, não podemos localizar o início da revolução, depois da primeira hashtag MeToo, ou quando uma centena de trabalhadoras sexuais ocupou a igreja Saint-Nizier em Lyon em 1975, ou quando a feminista negra Sojourner Truth se levantou na convenção das mulheres brancas em Akron, Ohio, em 1851, e gritou um retumbante “Não sou uma mulher?”, defendendo pela primeira vez na história a liberdade e o sufrágio das mulheres racializadas. Pode ter sido um pouco antes, ou um pouco mais tarde. Depende se você olha as coisas de uma perspectiva individual ou cósmica, nacional ou planetária, e se você se sente ou não parte de uma história de resistência que lhe precede e segue. Não é fácil dizer exatamente como começa um processo de emancipação coletiva. Mas é possível sentir a vibração que ele produz nos corpos que atravessa. Tampouco é possível resumi-lo em uma única narrativa. O que é peculiar aos movimentos ecológicos, transfeministas e antirracistas é a multiplicação de vozes, a articulação de séries heterogêneas, a pluralidade das línguas.
E com toda essa energia de resistência e luta acumulada, na França, em meio ao mais antigo e rançoso dos impérios patriarco-coloniais, estávamos, há apenas quarenta dias, prestes a iniciar um novo ciclo revolucionário transfeminista descolonial. Há apenas duas décadas, os gurus esquerdistas radicais do Tiqqun (1) diziam que a menina era a figura central da domesticação consumista do capitalismo contemporâneo — ao mesmo tempo o cidadão modelo e o corpo que melhor encarnava a nova fisionomia do capitalismo neoliberal. O Tiqqun contou entre as moças a bicha consumista e o “bad boy” suburbano racista e vadio (como imaginar isso sem pensar em cair no deslocamento homofóbico e racista!). Eles imaginavam “a menina” como o produto de uma equação entre altos índices de opressão e um alto grau de subserviência complacente que inevitavelmente produzia um mínimo de consciência política. Nossos amigos do Tiqqun não previam que eles, as meninas, as bichas, os trans e os corpos racializados dos subúrbios, liderariam a próxima revolução.
Um dia, sem avisar os gurus de esquerda, os patriarcas ou os patrões, as meninas estupradas começaram a tirar os estupradores do armário do abuso sexual. Havia arcebispos e pais de família, professores e líderes empresariais, médicos e treinadores, cineastas e fotógrafos. Ao mesmo tempo, os corpos sujeitos à violência racial, sexual e de gênero se levantaram por toda parte: os movimentos trans, lésbicos, intersexuais, antirracistas e de defesa direitos das pessoas com diversidade cognitiva ou funcional, trabalhadores precários racializados, trabalhadores e trabalhadoras sexuais, crianças adotadas… Em meio a esse turbilhão de insurreições, a cerimônia do César tornou-se a tomada transfeminista descolonial da Bastilha televisionada. Em primeiro plano, Aïssa Maïga denuncia o racismo institucional do cinema, e, quando dão o César a um Polanski ausente (o estuprador nunca está lá, o estuprador não tem corpo), Adèle Haenel se levanta e vira as costas para os patriarcas do cinema. Dois dias depois, a Subcomandante King Kong junta-se a Aïssa Maïga e Adèle Haenel e, denunciando a cumplicidade das reformas neoliberais de Macron com as políticas de opressão sexual, sexual e racial, decreta uma greve geral das minorias subjugadas: “A partir de agora nos levantamos e partimos”.
E nos levantamos e partimos aos milhares à manifestação de 8 de março. Tínhamos descido às ruas de Paris e a noite tinha se tornado uma assembleia de tecnofeiticeiras perseguidas pela polícia. Mas nem a polícia e nem a chuva poderiam arruinar a insurreição. Nunca uma marcha foi tão bela: avós e netas, bichas e heterodissidentes, lésbicas e trans, afroeuropeias e pálidas, de cadeiras de rodas e mãos falantes, masculinizadas e trans, migrantes e proletárias. Não falávamos mais sobre ir ou não assistir aos pequenos filmes de Polanski, falávamos em fazer uma revolução.
Sim, sim, embora não o soubessem, estávamos à beira de um levante transfeminista descolonial, tínhamos reunido nossos comandos e, como dizem os zapatistas, tínhamos “gerido nossa raiva”. Mas tudo isso foi poucos dias antes da Covid-19, antes de sermos obrigados a nos fechar em nossas casas, antes de nossos corpos serem objetivados como organismos suscetíveis à transmissão e ao contágio, antes de nossas estratégias de luta serem descoletivizadas e nossas vozes, fragmentadas.
Se o capitalismo mundial patriarco-colonial tivesse sido capaz de organizar uma estratégia transversal, de Hong Kong a Barcelona passando por Varsóvia, para dissolver movimentos dissidentes, não teria encontrado uma fórmula melhor do que a imposta pelo vírus, com o confinamento, barreiras e a nova rastreabilidade digital dos telecidadãos. A “estratégia do choque” anunciada por Naomi Klein, com seus passos para instrumentalizar o desastre “natural”, para declarar o estado de emergência, para transformar a crise em modo de governo, para salvar primeiro e sempre os bancos e as multinacionais enquanto as pessoas morrem… está aos poucos se desenvolvendo diante de nós. Tudo isso é verdade, mas afirmá-lo sem perceber a possibilidade de uma resistência igualmente estratégica, sem levar em conta o impacto que a crise da Covid-19 está tendo sobre a consciência individual e coletiva, é também naturalizar a opressão, tomá-la como certa, assinar um cheque em branco em nome do capitalismo neoliberal para o apocalipse.
O que podemos aprender sobre a gestão neoliberal da Covid-19 quando a examinamos de uma perspectiva transfeminista descolonial? É justamente em momentos como este que precisamos, para colocá-lo nas palavras da politóloga feminista e descolonial Françoise Vergès, ativar o pensamento utópico, como energia e como força de revolta, como sonho emancipatório e como gesto de ruptura. Deve-se reconhecer que a gestão da crise da Covid-19 gerou não apenas um estado político de exceção ou uma regulação higiênica do corpo social, mas também o que poderia ser chamado, seguindo os psicanalistas Félix Guattari e Suely Rolnik, de um estado de exceção micropolítico, uma crise da infraestrutura da consciência, da percepção, do sentido e da significação. E essa ruptura micropolítica é nossa única chance.
Parem o mundo… eu quero descer…
Todas as culturas, em diferentes épocas da história, inventaram processos de quarentena, de jejum, de ruptura dos ritmos alimentares, sexuais e produtivos da vida. Essas rupturas funcionam como técnicas de modificação da subjetividade, ativando um processo de perturbação da percepção e dos sentidos que pode gerar, em última instância, uma “metamorfose”, um devir outro. Algumas línguas do xamanismo ameríndio chamam este processo de “parar o mundo”. E isto é literalmente o que aconteceu durante a crise da Covid-19. O mundo capitalista parou.
Analisando a relação estrutural entre aceleração e capitalismo, o sociólogo alemão Hartmut Rosa descreveu a crise da Covid-19 como a experiência coletiva mais importante do século, pois mostra que podemos, graças a um conjunto de decisões políticas coordenadas, parar a aceleração capitalista. E essa desaceleração repentina não tem apenas um impacto econômico, é também igualmente suscetível a produzir outras formas de subjetivação.
Se observarmos, com o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, os diferentes rituais xamânicos das sociedades ameríndias para “parar o mundo”, poderíamos dizer que a maioria deles tem pelo menos três etapas. Na primeira, o sujeito é confrontado com sua condição mortal; na segunda, ele vê sua posição na cadeia trófica e percebe os elos energéticos que unem tudo que vive e dos quais ele mesmo faz parte; na terceira e última, antes da metamorfose, ele modifica radicalmente seu desejo, o que talvez lhe permita tornar-se outro. Não falo aqui de uma experiência religiosa porque não me refiro a nenhum saber teológico ou transcendente. Muito pelo contrário. Mas seria possível entender as mudanças sociais e políticas que a crise da Covid-19 gerou como uma espécie de gigantesco ritual tecnoxamânico para “parar o mundo” capaz de introduzir mudanças significativas em nossas tecnologias da consciência. As três etapas do xamanismo tupi poderiam funcionar, em escala global, como um prelúdio a uma metamorfose política da consciência para uma mudança de paradigma planetária.
1. Sideração, finitude e morte: necropolítica na economia neoliberal
Como a feminista boliviana María Galindo tem apontado, a especificidade desta pandemia não é sua taxa de mortalidade elevada, mas o fato de ameaçar os corpos soberanos do Norte capitalista mundial: os homens brancos europeus e norte-americanos de mais de 50 anos. Quando a AIDS sacudiu o mundo nos anos 80, nenhum político levantou um dedinho institucional sequer por considerar que aqueles que estavam morrendo (homossexuais, drogados, haitianos, africanos, profissionais do sexo, trans…) eram melhores mortos do que vivos. Nenhuma medida preventiva ou curativa foi aplicada naquela época, ao invés disso eles empregaram estritamente técnicas de estigmatização, exclusão e morte. O mesmo acontece hoje enquanto o vírus ebola, a tuberculose, a dengue e a AIDS estão semeando a morte nos países do Sul, com sistemas de saúde inexistentes ou enfraquecidos por políticas neocoloniais, de endividamento e de austeridade.
Mas hoje, e pela primeira vez desde a descoberta da penicilina, a Covid-19 colocou as sociedades opulentas do Norte e os antigos impérios coloniais europeus frente a frente com a morte de uma forma generalizada. Embora se aproprie de 90% das riquezas mundiais, o corpo soberano do capitalismo patriarco-colonial do Norte se confronta com sua condição vulnerável e mortal. Diante do vírus, nem os ativos financeiros nem as reservas de capital podem salvá-lo. A crise da Covid-19 é uma crise de soberania do corpo branco masculino e heterossexual do capitalismo patriarco-colonial. Isto também é igualmente verdadeiro para todos aqueles que, a partir de outras posições corporais ou de identificação, partilham de uma forma ou de outra dos privilégios soberanos do Norte. As filas de cadáveres em sacos plásticos e valas comuns em Hart Island, no estado de Nova York, assim como em todas as grandes cidades ricas, as cremações sem possibilidade de funerais ou rituais de luto, colocaram brutalmente o corpo soberano das sociedades capitalistas e patriarco-coloniais do Norte na situação em que os corpos de refugiados, migrantes, trabalhadores pobres, feminizados e racializados do Norte e também do Sul colonizado e globalizado estiveram e continuam estando. Esta é a primeira lição do ritual tecnoxamânico mundial: só será possível tornar as lutas transversais quando também compartilharmos as experiências de desapropriação, opressão e morte que o capitalismo gera.
2. A metafísica canibal do capitalismo patriarco-colonial
Nos rituais xamânicos de “metamorfose”, através do uso de plantas psicotrópicas e outras técnicas corporais (jejum, dança, escarificação, tatuagem, modificação da aparência corporal, repetição da linguagem), o iniciado, para mudar, deve primeiro tomar consciência de sua posição na cadeia de produção, reprodução e consumo de energia vital. É o que os antropólogos têm chamado de “ver a cadeia trófica”. O iniciado entende, por exemplo, que ele extrai vida e energia das plantas ou animais (ou humanos, no caso de culturas antropófagas) que ele mata para a alimentação ou outros fins. Em algumas sociedades tupis, o objetivo é entender a diferença entre “matar por comida” e “matar para acumular poder”. Para mudar, é necessário que a pulsão de acumulação de poder que capturou a totalidade do desejo seja progressivamente percebida como uma acumulação de morte, como um veneno cuja reserva ameaça o equilíbrio da vida.
A crise da Covid-19, com sua amplificação das formas de opressão e com a exposição das disfunções institucionais das democracias neoliberais, tornou visível a cadeia trófica do capitalismo patriarco-colonial. A cartografia da expansão do vírus e os efeitos exponenciais que ele tem provocado na economia mundial nos permitiu “ver” a ligação entre desmatamento e contaminação viral, entre a indústria agroalimentar e a indústria farmacêutica, entre a exploração e desapropriação da massa de trabalhadores pobres no Sul global e a exploração de corpos racializados no Norte, entre política de transporte e as economias petrolíferas, entre teletrabalho e pornografia digital. Wuhan é uma das principais oficinas da indústria automobilística mundial, onde são fabricadas peças sobressalentes da Peugeot e da Citröen. China, Índia e Paquistão são as oficinas têxteis do mundo; o Sul do continente americano e a África continuam sendo os principais centros de extração de metais raros e das matérias-primas necessárias para a fabricação da mais alta tecnologia do mundo. No passado, para citar o escritor Eduardo Galeano, na periferia do capitalismo mundial, “o ouro era transformado em lixo e a comida em veneno”. Hoje, os fluxos do capitalismo estão saturados: o lixo chega às praias do Norte e o veneno está em nossos pratos.
A crise também colocou em evidência o funcionamento antropofágico do capitalismo patriarco-colonial. A modernidade colonial segmentou os corpos vivos em espécies, classes, nacionalidades, raças, sexos, sexualidades, deficiências… Nesta economia-mundo, alguns são colocados na posição naturalizada de predadores e outros de presas. A violência sexual e racial está em mutação com o vírus. A máscara e o macacão higiênico apagam a diferença social entre homens e mulheres, negros e brancos. Mas sob o macacão e por trás da máscara, as diferenças políticas persistem e se acentuam. Por um lado, há o confinamento social dos brancos abastados; por outro, a contaminação forçada de trabalhadores pobres, feminizados e racializados.
As instituições democráticas que supostamente protegem os mais vulneráveis (crianças, doentes, idosos, pessoas com necessidades funcionais ou psicológicas específicas…) revelam sua cumplicidade com as estruturas do capitalismo patriarco-colonial e se comportam como o Estado sempre fez em contextos totalitários ou coloniais: abandonando, extorquindo, oprimindo, mentindo, administrando a punição e a morte. As instituições fragilizadas pela privatização neoliberal estão sofrendo uma mutação e se fagocitando entre si: a guerra de que os governos falam é a guerra que as instituições travam contra seus cidadãos. Os hospitais viram trincheiras, os asilos viram necrotérios, ginásios esportivos viram centros de detenção para os sem-teto, as prisões viram muros de pelotão de fuzilamento viral.
A guerra também está dentro da casa. O espaço doméstico, núcleo de retiro imunológico, revela-se não apenas como uma ilha de proteção, mas também como um concentrado de todas as formas de opressão e violência heteropatriarcais. Durante o confinamento, os casos de abuso e violência sexual multiplicam-se. O teletrabalho é rei. Ninguém reconhece o trabalho de cuidado e reprodução, de afeto e sexualidade, como trabalho. À precariedade de classe, raça, sexo e sexualidade somam-se agora outras segmentações de poder: os expostos e os protegidos, os que limpam e os que são limpos, os que são expostos ao contágio e os que podem preservar sua imunidade, os sem-teto e os que podem se isolar em suas casas, os que cuidam e os que são cuidados.
A crise da Covid-19 e sua capacidade de colocar em evidência a estrutura intrinsecamente ligada de todas as formas de opressão poderia nos ajudar a nomear os contornos de um novo sujeito revolucionário planetário para o qual as formas de opressão baseadas em raça, sexo, classe ou deficiência não se opõem umas às outras, mas se entrelaçam e amplificam. Nos últimos dois séculos, houve centenas de lutas, mas todas elas foram fragmentadas. Em retrospectiva, pode-se dizer que as políticas de emancipação têm sido caracterizadas pelo fato de terem sido estruturadas de acordo com a lógica da identidade. Os principais movimentos de ampliação do horizonte democrático foram construídos em torno de posições binárias que acabaram renaturalizando os sujeitos políticos da luta e criando exclusões: o feminismo para as mulheres heterossexuais e brancas — para não dizer homofóbicas, transfóbicas e racistas; políticas LGBT para homossexuais, bissexuais ou transexuais, especialmente brancos e abastados; políticas antirracistas para pessoas racializadas e outros corpos do lumpen somatopolítico mundial…
Por outro lado, as lutas até agora foram estruturadas em função das tensões modernas entre reconhecimento e justiça, entre liberdade e igualdade, entre natureza e cultura. Temos visto crescer o antagonismo entre políticas de classe e políticas de gênero, e a libertação feminista tem sido instrumentalizada para legitimar as políticas racistas e antimigratórias.
Buscando superar as tradicionais e reducionistas oposições entre movimento operário e feminismo, entre descolonização e ecologia, vozes tão diferentes quanto as das teóricas feministas Silvia Federici, Françoise Vergès e Donna Haraway nos convidam a imaginar a classe trabalhadora contemporânea como um vasto conjunto de corpos mineralizados, vegetalizados, animalizados, feminizados e racializados que realizam o trabalho desvalorizado da reprodução energética, sexual, afetiva e social da tecnovida sobre o planeta Terra. Essa perspectiva transecofeminista e descolonial também implica mudar a representação do sujeito político e sua soberania. A próxima revolução não é uma negociação de cotas de representação identitárias ou um ajuste de graus de opressão. A revolução vindoura coloca a emancipação do corpo vivo vulnerável no centro do processo de produção e reprodução política.
Ao naturalizar a esfera da reprodução social e sexual, as filosofias políticas do marxismo e do liberalismo têm enfatizado o controle dos meios de produção. Somente as linguagens políticas do fascismo fizeram da captura violenta dos meios de reprodução da vida (a definição de masculinidade e feminilidade, da família, da “pureza de raça”) o centro de seu discurso e ação políticos. Estamos agora confrontados, dos Estados Unidos de Trump ao Brasil de Bolsonaro, da Polônia de Andrzej Duda à Turquia de Erdogan, com a expansão das formas neonacionalistas e tecnopatriarcais do totalitarismo. Enfrentaremos também, antes cedo que tarde, e de forma brutal, a legalização do rastreamento telefônico, a expansão mundial de formas de tecnototalitarismo e de vigilância biodigital.
Diante dessas duas formas de totalitarismo, os produtivismos patriarco-coloniais, tanto neoliberais quanto socialistas, não poderão agir como verdadeiras forças antagônicas, pois ambos compartilham o mesmo ideal de produtividade e crescimento econômico e postulam o mesmo corpo político soberano: um sujeito branco, viril e heterossexual. Alguns querem recuar. Outros querem acelerar. Nenhum dos dois quer mudar. Esta talvez seja a lição mais importante deste ritual tecnoxamânico de “parar o mundo”. Somente uma nova aliança de lutas transfeministas, anticoloniais e ecológicas poderá combater ao mesmo tempo a privatização das instituições, a economia da dívida, a financeirização do valor do neoliberalismo e os discursos do totalitarismo neonacionalista, tecnopatriarcal e neocolonial. Somente uma revolução somatopolítica transversal será capaz de desencadear uma alternativa real.
3. Mutação do desejo político e a revolução
Esta terceira etapa é, nos rituais xamânicos, a que permite construir-se como outro, ativando um processo de metamorfose que pode implicar uma mudança de nome, um deslocamento institucional, um exílio, uma deriva… O último ensinamento desta crise da Covid-19 como ritual tecnoxâmico mundial é que só uma mutação do desejo político pode colocar em movimento a transição epistemológica e social capaz de deslocar o regime capitalista patriarco-colonial. A ativista negra americana Angela Davis disse que, durante os anos de segregação racial nos Estados Unidos, o mais difícil era imaginar que as coisas poderiam ser diferentes do que eram. O problema fundamental com que somos confrontados é que o regime capitalista patriarco-colonial colonizou a função desejante, cobrindo-a de valores monetários, de uma semiótica da violência, de modos de objetivação consumistas e de submissão depressiva. A chave do capitalismo patriarco-colonial não é a produção de mais-valia econômica, mas a fabricação de uma subjetividade cujos desejos foram adaptados ao processo de produção de capital e à reprodução heterossexual e colonial da vida. A violência opera fabricando uma subjetividade normativa que toma posse do corpo e da consciência até que eles aceitem “se identificar” com o próprio processo de extração de sua própria vida. A primeira coisa que o poder extrai, modifica e destrói é a nossa capacidade de desejar a mudança. Até hoje, todo o edifício capitalista patriarco-colonial tem se baseado numa estética hegemônica que limita o campo da percepção, corta a sensibilidade e captura o desejo. E é esse desejo que entrou em crise com a “parada do mundo” que a gestão do vírus gerou.
Na década de 70, Mafalda, mais uma vez uma garota raivosa, popularizou o slogan “parem o mundo, eu quero descer”. Agora o mundo parou. A questão é se desta vez nós realmente queremos descer.
(1) Tiqqun é uma revista filosófica de inspiração anarquista e pós-situacionista fundada em 1999 por Julien Coupat, absolvido em 2018 pelo caso Tarnac, em que foi suspeito de sabotar uma linha do TGV [trem de alta velocidade].