Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/01/31/inexistants_1776544
Apesar de não existir, a identidade “mulher” pode lhe custar a vida em Tijuana. Apesar de não existir, a identidade “trans” pode lhe custar a vida em Paris. A raça também não existe, mas a identidade racial pode lhe impedir de cruzar uma fronteira.
Se a metafísica contemporânea deixou de lado o debate escolástico sobre os universais que ainda era presente à época do estruturalismo francês, muitos dos sofismas dessa querela reaparecem hoje com mais intensidade nos debates sobre a identidade — nacional, sexual, de gênero, racial, etc. A inflação da retórica identitária no último século nos conduziu a uma encruzilhada estranha que afeta ao mesmo tempo as novas formas da hegemonia e as possibilidades de expressão dos antagonismos.
Este é o primeiro paradoxo: apesar de provenientes dos processos de descolonização e despatriarcalização, os movimentos de emancipação das minorias subalternas (raciais, de gênero, sexuais, etc.) acabaram se cristalizando em políticas de identidades. Longe de desmantelarem regimes de opressão racial, sexual ou de gênero, as políticas identitárias acabaram renaturalizando e até mesmo intensificando as diferenças, ao ponto de as transformar em verdadeiros desafios políticos. A linguagem contemporânea da “interseccionalidade”, com sua insistência em estabelecer relações entre identidades anteriormente segmentadas (sexo, raça, classe, gênero, sexualidade, deficiência, etc.), é apenas uma miragem metodológica frente à impossibilidade de se articular uma filosofia política não essencialista capaz de pensar a transversalidade com a qual as relações de poder produzem e opõem as diferenças.
Por outro lado, o processo de contrarrevolução, que começou com a expansão do neoliberalismo e tomou forma definitiva a partir da crise econômica de 2008 e os fracassos democráticos que a seguem, se apropria, agora de modo reativo, das linguagens da identidade para estabelecer, sobre a essência “nacional”, “heterossexual”, europeia”, “branca”, ‘cristã”…, novos processos de exclusão e limpeza sociais. Neste contexto neoconservador de exaltação de linguagens naturalistas, populistas e patriarco-coloniais nacionalistas, é urgente reconsiderar a possibilidade de levar a sério (agora a partir de uma releitura transfeminista e anticolonial) o que poderíamos chamar de empirismo político radical de Foucault: sua teimosia em afirmar a identidade como “inexistente”. Herdeira de Foucault, a filosofia política contemporânea está mais próxima da mecânica quântica que da física newtoniana. Em primeiro lugar, poderíamos dizer que o que é próprio às identidades, enquanto entidades ontológico-politicas inexistentes, é precisamente não serem objetos, o que não quer dizer que são enteléquias, simples ideologias, estruturas simbólicas ou conceitos puros desprovidos de qualquer materialidade. Pelo contrário: apesar de não existirem, as identidades enquanto entidades ontológico-políticas têm uma materialidade densa. É nessa estranha paisagem ontológico-política, ao mesmo tempo vazia e terrivelmente espessa, feita de objetos que não existem mas cujos efeitos podem ser fatais, que o filósofo contemporâneo navega.
Em termos ontológico-políticos, a identidade é “algo” que, sem existir, irrompe no domínio do tangível, torna-se visível, mensurável, quantificável. Ela não existe e ainda assim todo o sistema administrativo e arquitetônico de uma sociedade se comporta como se existisse. De tal modo que mesmo sem existir, torna-se tangível, visível. Parece mais real que a realidade. Sem existir, a identidade torna-se o argumento decisivo das narrativas que definem uma era, o parâmetro central pelo qual o reconhecimento político e a soberania são atribuídos. Então, apesar de não existir, a identidade “mulher” pode lhe custar a vida em Tijuana e bem mais perto de casa que em Tijuana. Toda sua vida é definida por ela. Apesar de não existir, a identidade “trans” pode lhe custar a vida também em Paris. A raça não existe, mas a identidade racial pode lhe impedir de cruzar uma fronteira, de alugar um apartamento, de conseguir um emprego. A própria modalidade de sua “inexistência” permanece intangível, e ainda assim, através da discriminação e da exclusão, pela regulação da vida e da morte, as condições aparentes da prova empírica da existência das identidades aparecem. Isso é o que se pode chamar de princípio de incerteza identitária na filosofia política: o povo não existe, a nação não existe, a raça não existe, a diferença sexual não existe, a homossexualidade e a heterossexualidade não existem, a esquizofrenia não existe, a transexualidade não existe e, ainda assim, esses “inexistentes” são a infraestrutura do poder e da dominação cotidiana. O paradoxo da existência inexistente da identidade se intensifica e adquire a consistência de uma piada metafísica quando as condições da enunciação filosóficas são determinadas pela aparência do corpo do filósofo de acordo com os parâmetros de uma (ou várias) dessas identidades inexistentes. Seria possível afirmar a não existência da homossexualidade, ou da transexualidade, por exemplo, quando ocupei historicamente a posição do homossexual ou do transexual — encarná-la, habitá-la? O que significa falar como transexual, como homossexual, como um corpo racializado se a transexualidade, a homossexualidade e a raça não existem? Ainda não estamos de luto por aqueles que, tendo sido marcados por uma identidade inexistente, não puderam existir de outro jeito. Não começamos ainda a falar sem repetir a linguagem mortífera da identidade inexistente.