Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/03/01/le-brexit-et-mon-lumbago-par-paul-b-preciado_1779976
Impressões e dores de um corpo que atravessa fronteiras em tempos de epidemia.
Retorno à França depois de fazer uma série de conferências na Inglaterra, onde pude testemunhar em primeira mão o fracasso do Brexit: algumas semanas após a instauração de uma nova fronteira dura, os populistas ingleses foram vencidos… por um vírus microscópico. Quinze casos de coronavírus já foram reportados na ilha. Um vírus pode ser declarado estrangeiro? Uma fronteira pode realmente ser fechada? A pesquisa do “paciente zero” do coronavírus nos hospitais da Itália e da Inglaterra lembra a caça às bruxas da crise da AIDS: disseram que o paciente zero era um macaco (não há miséria humana pela qual nosso irmão subjugado não seja culpado cedo ou tarde), ou que era um homossexual hiperativo que — porque era preciso fazer uma tabela de contágio — deve ter fodido em vinte países diferentes e saltado de cama em cama, ágil e leve como uma pulga, para penetrar tantos buracos quanto possível. Nos tempos da AIDS não havia a questão de fechar as fronteiras. A questão era fechar o ânus. Com o Brexit, a Inglaterra já encontrou uma forma de fechar o seu, mas o coronavírus encontrou um outro caminho. Coronexit!
Depois de atravessar a fronteira inútil do Reino Unido para voltar à antiga Europa unionista, fui golpeado não pela alegria de sair da ilha dos puros, mas por uma crise banal de dor lombar. Num primeiro momento me senti exausto, então deitei em minha cama e dez minutos depois não pude mais me levantar. Eu sou um peso que meu pensamento não pode mais levantar. A dor toma todo meu corpo. E também minha alma, se ela existe. Apesar de acontecer em minhas costas, a dor lombar é como o neoliberalismo: ele parece agir localmente, mas suas consequências invadem todo o corpo. Acredito poder me mover, mas, sem nenhum aviso, uma corrente atravessa meu corpo e fico parado, como se alguém tivesse congelado minha imagem. A dor faz de minha solidão e falta de proteção mais evidentes. Virginie me leva ao consultório de osteopatia. Ela me deixa na porta e eu, que só consigo andar e sentar com dificuldade, espero de pé, como um objeto próximo a um balde de guarda-chuvas na entrada. Por alguns instantes me divirto sendo idêntico a esse objeto em sua passividade, talvez porque os objetos, ao menos como acreditamos, não sofrem.
A osteopata é muito jovem e tem grandes mãos brancas. Ela me olha e diz imediatamente: lombar. Tiro a roupa com dificuldade e deito na mesa. A osteopata coloca a palma em meu sincipúcio e a outra em meu cóccix, então suas duas mãos mexem em uníssono, uma encontra a ponta de meu nariz, a outra procura a ponta de meus pés, e de novo, sua palma descansa, como um pequeno pássaro nas costas de um búfalo, em meus ombros, enquanto a outra pressiona meu quadril. E assim, pouco a pouco, todo meu corpo, ou quase todo, é tocado. Lá fora, o vento sacode as árvores e os postes. Se diz que um homem morreu pela queda de uma árvore sobre seu carro perto do museu Quai-Branly. Lá fora, diz o presidente da República, uma epidemia ameaça a França. Pra que servem as fronteiras [?]. Mas nada disso parece real enquanto estou deitado nesta mesa, meu corpo esticado como uma folha rasgada flutuando na superfície da água.
Apesar de estar seminu, pareço um homem qualquer. Após me examinar, ela não disse nada, não perguntou nada. Estou esperando sua pergunta. Tenho medo. A pressinto. Mas ela não disse nada. Enquanto me visto, pergunto: “Talvez tenha percebido ao me examinar que sou trans.” “O que quer dizer?”, ela pergunta. “Que eu era uma mulher antes e agora sou um homem”. Ela enrubesce. “Ah”, diz. “Sim, sim, percebi algo”. Mas a surpresa em seu rosto é mais visível que a confirmação de uma intuição passada. Se instala um silêncio breve, mas pesado. Então sua voz quebra o silêncio: “Você é a primeira pessoa trans a vir ao meu consultório e não sei exatamente como cuidar de você. Há algo especial em ser uma pessoa trans que você devesse me falar?” Eu digo, “A única coisa importante era dizer. Já o fiz. O resto é idêntico. Você pode achar órgãos que estão onde deveriam estar e outros que não estão. Mas tudo está certo.” “Nunca imaginei que ser trans fosse assim”, diz a osteopata. E ela completa, “Me desculpe por dizer isso, pensei que fosse algo mais bizarro”. Eu lhe digo que compreendo e completo: “Não há nada fora do normal. É só um corpo, como qualquer outro.” Me viro lentamente para terminar de me vestir.
Olhando pela janela, posso ver, sem ouvir, a força da tempestade. Eu a pergunto: “O que você recomenda para a dor lombar?”, calculando o ângulo de entrada dos meus pés em meus sapatos e movendo minha perna em câmera lenta. “Num geral, responde a osteopata, recomendo muito repouso, um pouco de exercício e uma cinta de contenção para as costas. E no seu caso, já que você é trans…” Eu a interrompo antes que termine a frase: “A mesma coisa, nem mais nem menos, descanso, fazer os exercícios e uma cinta de contenção para as costas.” Ela ri, “acho que sim”, diz. A dor lombar me impede de rir, mas minha alma ri silenciosamente. Esse é o corpo trans: um corpo como qualquer outro.