Texto original: https://www.liberation.fr/debats/2020/07/03/pour-un-monument-a-la-necropolitique_1793298
Quando estátuas públicas são derrubadas é como se uma mão coletiva entrasse no relógio da história e movesse rapidamente seus ponteiros. E eles agora estão dançando como maracas. Se as elites estão inquietas é porque, como corpos monumentalizados, as estátuas que nos rodeiam incorporam uma espécie de biopolítica esculpida: é preciso reconhecer a força performativa do ato de modelar um corpo (e não outro [qualquer]), de o representar como vitorioso ou vencido, armado ou desarmado, a cavalo ou a pé, vestido ou nu, como um simples busto ou de corpo inteiro, e de inscrevê-lo no espaço físico da cidade através dos materiais como pedra ou metal que desafiam a erosão e a mudança. As estátuas são ex-votos coletivos em uma escala superdimensionada, próteses da memória histórica que lembram as vidas “que importam”, que fixam no espaço os corpos que “merecem se tornar estátuas”.
Em nossas cidades modernas, de herança patriarcal e colonial, as estátuas funcionam como signos compartilhados de uma estética da dominação que gera identificação ou distância, coesão social ou exclusão. As esculturas públicas não representam o povo, elas o constroem: designam um corpo nacional puro e determinam um ideal de cidadania colonial e sexual. Habitamos coletivamente uma paisagem icônica saturada de signos de poder, que apoiados em narrativas históricas e épicas acabam sendo estetizadas e naturalizadas até deixarmos de perceber sua violência cognitiva. A exaltação pública dos valores de supremacia branca, masculina e heterossexual por estátuas eclesiásticas, militares, governamentais… faz da cidade moderna um parque de diversões patriarco-colonial, onde as estátuas funcionam como avatares que servem para construir narrativas de dominação, pertença e reconhecimento, ou de submissão, exclusão e invisibilidade. É por isso que todas as estátuas devem cair.
Além disso, todas as estátuas públicas que caem são mentirosas. Nenhuma incarna o corpo físico que pretende representar, mas sim o corpo político normativo, os valores de virilidade, pureza racial, riqueza, poder e vitória do discurso patriarco-colonial que as encomendou e instalou. Nenhuma estátua representa Colbert se masturbando ao olhar um mapa da África, ou o frei Junípero Serra fodendo um índio, ou Edward Colston enquanto um escravo negro lhe chupa. Todas as estátuas são mentirosas. Todas as estátuas são destinadas a cair um dia. Existe um primado secreto mas determinante do gesto iconoclasta em qualquer decreto governamental sobre escultura. Como nos lembra Winfried Georg Sebald, os monumentos que inscrevem o poder de um sobre o outro no espaço da cidade contêm em seu próprio estilo violento e grandiloquente o germe paradoxal de sua própria destruição. E quanto maiores são as estátuas, melhores serão seus escombros.
Existe uma analogia tectônica entre a demolição de estátuas que até o presente serviram de emblemas culturais de uma civilização e o necessário desmantelamento da infraestrutura patriarcal e colonial da modernidade capitalista. Precisamos de uma iconoclastia lenta e profunda. É preciso desmantelar todas as estátuas monumentais que comemoram a modernidade patriarcal e colonial, absolutamente todas, e junto com elas criar — para a tranquilidade dos memorialistas iconófilos — o Monumento à Necropolítica do Mundo Moderno. E que os pedestais e museus fiquem vazios. É preciso dar lugar à utopia. É preciso abrir espaço para os corpos vivos. Menos metal e mais vozes, menos pedra e mais carne.
Que todas, absolutamente todas as estátuas desmontadas sejam colocadas no mesmo lugar, no chão, de pé, face a face, lado a lado, mas a um metro e meio de distância uma da outra, como se devessem manter entre si uma distância semelhante àquela que protege da contaminação viral — a violência, o terror, o ódio contaminam mais que um vírus — para que os visitantes desse mausoléu silencioso do terror moderno possa passar entre elas, tocá-las, conhecê-las, olhá-las nos olhos, e talvez um dia perdoá-las.
Poderíamos iniciar um debate sobre o melhor lugar para hospedar esse Monumento reciclado e gigantesco da Necropolítica Colonial Moderna. Ele poderia ser instalado na praça principal de Burgos, na Espanha, a dois passos da Casa del Cordón, onde Cristóvão Colombo assinou o acordo com os reis católicos para empreender a viagem transatlântica; ou entre as ramblas e o Paseo Marítimo em Barcelona; ele poderia ser colocado no porto de Liverpool, ou na praça da Concórdia em Paris, ou em frente ao Bourse Maritime em Bordeaux, ou nos jardins do palácio real de Bruxelas… há muitos lugares, mas nenhum será grande o suficiente para abrigar todas essas estátuas. É por isso que o melhor lugar para colocar as estátuas me parece ser uma linha que corresponda às fronteiras da Europa e dos Estados Unidos, seguindo exatamente as linhas de demarcação definidas por seus respectivos governos. Esse muro perfurado de infâmia substituiria as barreiras e as valas, os muros e as cercas, a polícia das fronteiras e a alfândega. Todas essas estátuas, colocadas a um metro e meio de distância umas das outras, e às vezes até mais, permaneceriam ali, indicando que o território agora definido como Europa ou Estados Unidos é o resultado de suas práticas e discursos. E elas ficariam lá, como uma fronteira histórica, nos lembrando de onde viemos, até que um dia as estátuas caiam, empurradas pelo vento, sacudidas pelos transeuntes ou deterioradas pela chuva.
Não sofremos de um esquecimento da história normativa, mas de um apagamento sistemática da história da opressão e da resistência. Façamos descer as estátuas de seus pedestais e subamos neles para falar e contar nossa própria história de sobrevivência e libertação.